Edmundo de Carvalho e suas letras valeparaibanas
A União Brasileira de Escritores (UBE) resolveu produzir antologias de Crônicas, Contos e Poesias entre seus associados pelo Brasil. Foram selecionados 25 autores de cada tema. O conto “Lobisomem de Bananal”, de Edmundo de Carvalho, ficou entre os 25 do Brasil.
Edmundo de Carvalho
Edmundo de Carvalho fala aos alunos do Curso de História da UNITAU, em Silveiras
Abaixo o conto “Lobisomem de Bananal”, de Edmundo de Carvalho, que estará no livro da União Brasileira de Escritores:
Lobisomem
de Bananal
Chegou à cidade rapazola. As
pessoas do lugarejo, habituadas à rejeição do novo, puseram a observar. Com o
tempo, acostumaram-se. Perceberam nele um quê desmiolado. Orelhas grandes meio
pontiagudas, pele mais amarelada que o habitual, cheiro incômodo de quem se
esquiva do banho. Sentado ao chão punha a se coçar, habitualmente.
Falava o suficiente pra se
manter vivo. Diziam que grunhia quando dormia, lá na Estação de trem. O local
era pouco freqüentado à noite e ele se arranjou por ali. Ninguém fez conta.
Davam-lhe de comer e cobrir, como exige a caridade cristã e isto lhe bastava. Fez
por fim, da Estação, sua morada, o que lhe garantiu a “patente” de Nelson
Maquinista. Alcunha que ele, diga-se, ostentava com orgulho.
Reservava o hábito de
brincar com as crianças pelas ruas da cidade, ora com bolinhas de gude, ora no
futebol de rua, mas muitas vezes, por ver a criançada gargalhar, pulava e
rodopiava fazendo-se o bobo. Espojava-se na poeira da Rua da Palha e corria pra
lá e pra cá fazendo micagens.
Daquele jeito que saia,
empoeirado, tomava chuva e foi ficando cada vez mais com cheiro de cão vadio.
Nos quintais das casas mais
caridosas, costumava fazer algum serviço, por pagar comida. Carpia, tratava de
galinhas, ordenhava cabras, colhia ovos. Todos se acostumaram a ele e já não
nutriam medo, apenas asco. Tratavam-no com a devida distância. Ao lhe passar o
prato de comida podiam perceber bem a imundície. Chegaram a notar, até, fezes
de galinha em suas mãos. Mas era o Nelson Maquinista, bastava!
Aos domingos rodeava a
igreja acompanhando a missa, da praça. Sabia-se inoportuno lá dentro. Tudo
corria por conta de estudada indiferença de todos. As mães recomendavam aos filhos
que não o tocassem. As pessoas lhe davam moedas para vê-lo afastado das rodas
que se formavam depois da missa. Nelson sabia se esquivar por entre hábitos e
costumes. Rodeava, mas não intervinha. Aproximava-se, mas não tocava. Sorria
sempre. Chorava em todos os velórios e era o último a sair do cemitério. Aliás,
passava mais tempo lá dentro do que permitiam os costumes. Intrigava, mas não
chegava a pôr medo.
E foi assim que, figura
antológica da cidadezinha, passou anos naquela explícita clandestinidade.
Lá um dia, pra quebrar a
monotonia das horas, o delegado foi ao juiz da comarca, que mandou chamar o
prefeito, que, por sua vez, mandou chamar o padre e mandaram chamar os
fazendeiros mais importantes do lugar. Estava acontecendo um zunzunzum muito
forte a cerca de avistamentos de lobisomem no município. Providências haviam
que ser tomadas, para que a tranqüilidade reinante não fosse aviltada pelo
terror.
Por conseqüência de tão
importante sugestão, o assunto passou de zunzunzum de botequim pras rodas de
domingo na praça, nos chás da tarde, nas vendas, nos pontos de leite, nas procissões
e até no baile de debutantes.
E o tal cão danado, fazia
cada vez mais vítimas. Estavam sumindo galinhas, cabras e passarinhos de
gaiola. Chegaram a ver arranhões em portas e árvores. O mistério estava
instalado. O horror tomou conta das senhoras da cidade. Em noites de lua cheia
ninguém saia às ruas. E em noites desertas as sombras se movimentam com muito
mais ansiedade. Os morcegos se multiplicam. As corujas piam mais assustadoramente.
O uivo de um cão no cio recomenda a presença do comedor de fezes de galinha a
rondar os quintais. Os mitos da noite se unem numa procissão do inferno.
Em noites sem lua, já se
podiam ver mulas-sem-cabeça batendo seus cascos e lançando jorros de fogo pelas
ventas. As mentes da cidade se uniram na fantástica avidez de se produzir
causos e acontecidos. Mas o auge da imaterialidade mítica exige seu contraste. Há
que haver um ente mais carne e osso que se sirva a ligar os dois mundos. A
exemplo da mitologia grega, que criou seus semideuses, fazendo-os habitar tanto
o convívio dos mortais quanto o Olimpo, noutras sociedades, criou-se os semidiabos.
E o lobisomem de Bananal estava feito, convivendo dois mundos. Restava
localizar o mutante.
Nelson Maquinista passava ao
largo daquela catarse. Dormia com a mesma indiferença, na plataforma da
Estação. Não distinguia noites de lua, das de estreladas, a não ser para fitar
atentamente aquele amontoado de pequenos vaga-lumes inexplicáveis. Cantarolava,
sorria e dormia o sono dos bobos.
Foi quando o inevitável
bateu à testa de alguém, que não demorou a bater de orelha em orelha. Quem mais
poderia incorporar tal entidade do demônio? Quem tinha aquelas orelhas pontiagudas?
Quem vivia se espojando pela terra e se coçando qual cão vadio? Quem uivava
para as estrelas, na plataforma da Estação? Quem vivia a passear pelo
cemitério, por horas a fio? Quem evitava entrar na igreja pra assistir à missa?
Ah! Alguém lembrou: “quem vivia com as
mãos sujas de merda de galinha?” Não tinham mais dúvidas.
Acorreram ao delegado, que
tornou ao juiz, que ainda que meio incrédulo tornou ao prefeito, que, pra
prontamente defender seus eleitores, tornou ao padre, que, fazendo o sinal da
cruz, reuniu os pios. Depois de muito debate, de muitas certezas e incertezas,
de muitos arroubos em defesa da integridade da sociedade local, resolveram pôr
a coisa à prova. Planejaram um ardil que seria infalível. Lançando mão do
caráter inevitável das aberrações da mutação, que condena o danado a se
transformar, em noites de lua cheia, traçaram a estratégia. O palco seria exatamente
a plataforma da Estação. O juiz aquiesceu, o padre abençoou, o prefeito assentiu
e o delegado partiu para a ação, apoiado pelos fazendeiros.
Dado toque de recolher, os
homens envolvidos na operação deveriam portar capa preta e chapéu. Levaram
rolos de fumo, resmas de alho e estacas de madeira para se, em caso mais extremo,
assim o exigisse.
Havia na Estação, uma gaiola
grande, reforçada, feita de madeira, qual sela de prisão, onde se guardavam as
correspondências e despachos que iam e vinham de trem. Foi lá que, numa
fatídica noite de lua cheia, prenderam Nelson Maquinista, às seis horas da
tarde e aguardaram o momento da mutação que deveria se dar à meia noite.
A cidade toda erma. Nas
casas, corações sobressaltados. Na plataforma, homens de chapéu e capa preta,
resma de alho na mão, relho na outra. Caminhavam aflitos de um lado pra outro,
vagueando. Trocavam, vez por outra, uma ou duas palavras: “Que horas são?” “Oito horas.”
“Ainda!” Rostos amarrados, uns
convictos, alguns por certa obrigação social, outros, embora não o revelassem
já certos de estarem cometendo uma infâmia. Envergonhados. Mas o clamor popular
e a comoção coletiva exigiam uma resposta. Afinal, todas as evidências
apontavam para o miserável Nelson. Nada de concreto poderia ser afirmado, é
claro, mas nenhum outro cidadão daquele lugarejo seria capaz de tamanha
dissimulação. E quem poderia ser desonrado daquela forma, senão que o mendigo?
Pensavam todos, cada um de per se.
Nelson Maquinista, na verdade fora o escolhido para redimir todos os outros,
para eliminar suspeitas, “para salvar os
pecados do mundo”.
De início, Nelson se sentiu
até lisonjeado. Pego de surpresa e sem esboçar qualquer resistência, como era
de seu caráter absolutamente ingênuo e pacífico, seguiu sereno e altivo para dentro
do gaiolão, sob os olhares perplexos de todos. Ficou a observar os movimentos
dos homens a quem conhecia bem. Sabia dos mistérios de cada um. Seu estado
aparentemente catatônico guardava, de fato, um sentido muito próprio de percepção
da realidade. Não havia dissimulação que ele não pudesse perceber. Como aquela
ação pronta e pragmática foi verdadeira, reveladora da mais pura fragilidade do
ser humano, Nelson seguiu sua sina sem tropegar, obediente a uma determinação
humana, sem rodeios. Ele se sentiu parte de um grande espetáculo circense, para
o qual a plataforma era o melhor de todos os palcos. Ali ele mesmo havia
escolhido como morada. Estava em casa e todos os outros eram seus convidados.
Ele era o ator principal, o centro de todas as atenções, de todos os
pensamentos. Havia, no cotidiano daquela cidade a certeza de que todos eram
normais e ele o demente. Mas, naquele momento, ele teve sua certeza de que era
apenas o único são. A existência nos revela esses contrastes. Estavam ali na
Estação, na verdade, travestidos de chapéu, aba quebrada na testa, capa preta,
todos disfarçados em um só: o juiz, o prefeito, o padre, o delegado, os mais
bem sucedidos fazendeiros e comerciantes da cidade, menos o banqueiro, que não
via, no acontecimento, nenhuma vantagem pecuniária e foi dormir com suas
contas.
Nelson Maquinista, de quem
havia sido subtraída toda a roupa, para permitir aos seus algozes a
visualização completa de todo o processo de mutação, à vista de todos,
carapinho num canto, pediu cobertas e não foi atendido. Era preciso explicitar
completamente aquele ato transloucado. Dormiu serenamente.
Uma espessa névoa encobriu a
cidade e apagou o olho crítico da lua cheia. O ambiente ficou mais
circunspecto, mais apavorante. Os homens procuraram, inventando pretexto para
uma conversa, se agrupar. Falavam de trivialidades. A conversa era nervosa. A
névoa, sorrateira, transformou o ambiente para mais intimista, fez as
consciências mais hesitantes, inseguras. E o debate ficou mais e mais
acalorado, até que, o prefeito, habituado ao conchavo político, tomou da
palavra e passou a enaltecer a atitude corajosa e altruísta de todos os que ali
se dispuseram a defender o interesse que lhe parecia o mais importante de
todos, que era a salvaguarda das crianças da cidade, ameaçadas pela voracidade
daquela criatura endemoniada. Apaziguou os ânimos e reconstituiu a certeza
primeira sobre aquele “ato pensado”.
Aplacados os nervos, perceberam que o principal poderia estar se perdendo, que
era observar a mutação. E alguém bradou, “já
são onze e meia”. Correram todos para frente da jaula improvisada. Silêncio
sepulcral. Ninguém mexia um cílio. Podia-se ouvir a respiração de cada um.
Estavam todos em transe. Somente Nelson Maquinista se mantinha em seu sono,
impassível. Do mesmo jeito que dormiu, ali permanecia na mesma posição. Não
mexia um dedo. Até que, ao bater da meia noite, quando todos esperavam pelo
início do processo tão esperado, o infeliz rapaz deu uma virada súbita para o
outro lado e todos se afastaram emitindo um oh! Em uníssono, brandindo suas
resmas de alho. E tiveram a certeza da pronta manifestação do esperado. Olhavam
atônitos. Esperaram. Os minutos estavam como que congelados. Alguns já podiam
ver os pelos crescerem no corpo do infeliz, eriçados pelo frio. Outros viam as
orelhas cada vez mais pontiagudas. Mas era pura miragem. O padre fez o sinal da
cruz por três vezes e pôs-se a orar. Os outros o seguiram. E o indigente
permanecia imóvel, como em estado de hibernação. Nada aconteceu, até que
tivesse dada, já, uma hora. E o mesmo aconteceu até às seis horas da manhã,
quando, o juiz, tendo se dado por instruído, ordenou a retirada. Daí, para
reduzirem o mais possível o impacto negativo dos efeitos do vexame, trataram de
pôr tudo em ordem rapidamente, e dispersaram antes das seis e meia.
Era uma vez...
Assim me contaram na Casa da
Mãe Joana.
Edmundo de Carvalho.
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