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Este Blog, do Projeto Prex-Unitau Taubaté Tempo e Memória, tem como objetivo ser um canal de troca de informações sobre a História e a Memória da Região Metropolitana do Vale do Paraíba (RMVale).

quarta-feira, 4 de junho de 2014

NOTÍCIA - Edmundo de Carvalho, contista de Silveiras, em livro da UBE

Edmundo de Carvalho e suas letras valeparaibanas
    
   A União Brasileira de Escritores (UBE) resolveu produzir antologias de Crônicas, Contos e Poesias entre seus associados pelo Brasil. Foram selecionados 25 autores de cada tema. O conto “Lobisomem de Bananal”, de Edmundo de Carvalho, ficou entre os 25 do Brasil.

Edmundo de Carvalho

 Edmundo de Carvalho fala aos alunos do Curso de História da UNITAU, em Silveiras





     Abaixo o conto “Lobisomem de Bananal”, de Edmundo de Carvalho, que estará no livro da União Brasileira de Escritores:

Lobisomem de Bananal

Chegou à cidade rapazola. As pessoas do lugarejo, habituadas à rejeição do novo, puseram a observar. Com o tempo, acostumaram-se. Perceberam nele um quê desmiolado. Orelhas grandes meio pontiagudas, pele mais amarelada que o habitual, cheiro incômodo de quem se esquiva do banho. Sentado ao chão punha a se coçar, habitualmente.
Falava o suficiente pra se manter vivo. Diziam que grunhia quando dormia, lá na Estação de trem. O local era pouco freqüentado à noite e ele se arranjou por ali. Ninguém fez conta. Davam-lhe de comer e cobrir, como exige a caridade cristã e isto lhe bastava. Fez por fim, da Estação, sua morada, o que lhe garantiu a “patente” de Nelson Maquinista. Alcunha que ele, diga-se, ostentava com orgulho.
Reservava o hábito de brincar com as crianças pelas ruas da cidade, ora com bolinhas de gude, ora no futebol de rua, mas muitas vezes, por ver a criançada gargalhar, pulava e rodopiava fazendo-se o bobo. Espojava-se na poeira da Rua da Palha e corria pra lá e pra cá fazendo micagens.
Daquele jeito que saia, empoeirado, tomava chuva e foi ficando cada vez mais com cheiro de cão vadio.
Nos quintais das casas mais caridosas, costumava fazer algum serviço, por pagar comida. Carpia, tratava de galinhas, ordenhava cabras, colhia ovos. Todos se acostumaram a ele e já não nutriam medo, apenas asco. Tratavam-no com a devida distância. Ao lhe passar o prato de comida podiam perceber bem a imundície. Chegaram a notar, até, fezes de galinha em suas mãos. Mas era o Nelson Maquinista, bastava!
Aos domingos rodeava a igreja acompanhando a missa, da praça. Sabia-se inoportuno lá dentro. Tudo corria por conta de estudada indiferença de todos. As mães recomendavam aos filhos que não o tocassem. As pessoas lhe davam moedas para vê-lo afastado das rodas que se formavam depois da missa. Nelson sabia se esquivar por entre hábitos e costumes. Rodeava, mas não intervinha. Aproximava-se, mas não tocava. Sorria sempre. Chorava em todos os velórios e era o último a sair do cemitério. Aliás, passava mais tempo lá dentro do que permitiam os costumes. Intrigava, mas não chegava a pôr medo.
E foi assim que, figura antológica da cidadezinha, passou anos naquela explícita clandestinidade.
Lá um dia, pra quebrar a monotonia das horas, o delegado foi ao juiz da comarca, que mandou chamar o prefeito, que, por sua vez, mandou chamar o padre e mandaram chamar os fazendeiros mais importantes do lugar. Estava acontecendo um zunzunzum muito forte a cerca de avistamentos de lobisomem no município. Providências haviam que ser tomadas, para que a tranqüilidade reinante não fosse aviltada pelo terror.
Por conseqüência de tão importante sugestão, o assunto passou de zunzunzum de botequim pras rodas de domingo na praça, nos chás da tarde, nas vendas, nos pontos de leite, nas procissões e até no baile de debutantes.
E o tal cão danado, fazia cada vez mais vítimas. Estavam sumindo galinhas, cabras e passarinhos de gaiola. Chegaram a ver arranhões em portas e árvores. O mistério estava instalado. O horror tomou conta das senhoras da cidade. Em noites de lua cheia ninguém saia às ruas. E em noites desertas as sombras se movimentam com muito mais ansiedade. Os morcegos se multiplicam. As corujas piam mais assustadoramente. O uivo de um cão no cio recomenda a presença do comedor de fezes de galinha a rondar os quintais. Os mitos da noite se unem numa procissão do inferno.
Em noites sem lua, já se podiam ver mulas-sem-cabeça batendo seus cascos e lançando jorros de fogo pelas ventas. As mentes da cidade se uniram na fantástica avidez de se produzir causos e acontecidos. Mas o auge da imaterialidade mítica exige seu contraste. Há que haver um ente mais carne e osso que se sirva a ligar os dois mundos. A exemplo da mitologia grega, que criou seus semideuses, fazendo-os habitar tanto o convívio dos mortais quanto o Olimpo, noutras sociedades, criou-se os semidiabos. E o lobisomem de Bananal estava feito, convivendo dois mundos. Restava localizar o mutante.
Nelson Maquinista passava ao largo daquela catarse. Dormia com a mesma indiferença, na plataforma da Estação. Não distinguia noites de lua, das de estreladas, a não ser para fitar atentamente aquele amontoado de pequenos vaga-lumes inexplicáveis. Cantarolava, sorria e dormia o sono dos bobos.
Foi quando o inevitável bateu à testa de alguém, que não demorou a bater de orelha em orelha. Quem mais poderia incorporar tal entidade do demônio? Quem tinha aquelas orelhas pontiagudas? Quem vivia se espojando pela terra e se coçando qual cão vadio? Quem uivava para as estrelas, na plataforma da Estação? Quem vivia a passear pelo cemitério, por horas a fio? Quem evitava entrar na igreja pra assistir à missa? Ah! Alguém lembrou: “quem vivia com as mãos sujas de merda de galinha?” Não tinham mais dúvidas.
Acorreram ao delegado, que tornou ao juiz, que ainda que meio incrédulo tornou ao prefeito, que, pra prontamente defender seus eleitores, tornou ao padre, que, fazendo o sinal da cruz, reuniu os pios. Depois de muito debate, de muitas certezas e incertezas, de muitos arroubos em defesa da integridade da sociedade local, resolveram pôr a coisa à prova. Planejaram um ardil que seria infalível. Lançando mão do caráter inevitável das aberrações da mutação, que condena o danado a se transformar, em noites de lua cheia, traçaram a estratégia. O palco seria exatamente a plataforma da Estação. O juiz aquiesceu, o padre abençoou, o prefeito assentiu e o delegado partiu para a ação, apoiado pelos fazendeiros.
Dado toque de recolher, os homens envolvidos na operação deveriam portar capa preta e chapéu. Levaram rolos de fumo, resmas de alho e estacas de madeira para se, em caso mais extremo, assim o exigisse.
Havia na Estação, uma gaiola grande, reforçada, feita de madeira, qual sela de prisão, onde se guardavam as correspondências e despachos que iam e vinham de trem. Foi lá que, numa fatídica noite de lua cheia, prenderam Nelson Maquinista, às seis horas da tarde e aguardaram o momento da mutação que deveria se dar à meia noite.
A cidade toda erma. Nas casas, corações sobressaltados. Na plataforma, homens de chapéu e capa preta, resma de alho na mão, relho na outra. Caminhavam aflitos de um lado pra outro, vagueando. Trocavam, vez por outra, uma ou duas palavras: “Que horas são?” “Oito horas.” “Ainda!” Rostos amarrados, uns convictos, alguns por certa obrigação social, outros, embora não o revelassem já certos de estarem cometendo uma infâmia. Envergonhados. Mas o clamor popular e a comoção coletiva exigiam uma resposta. Afinal, todas as evidências apontavam para o miserável Nelson. Nada de concreto poderia ser afirmado, é claro, mas nenhum outro cidadão daquele lugarejo seria capaz de tamanha dissimulação. E quem poderia ser desonrado daquela forma, senão que o mendigo? Pensavam todos, cada um de per se. Nelson Maquinista, na verdade fora o escolhido para redimir todos os outros, para eliminar suspeitas, “para salvar os pecados do mundo”.
De início, Nelson se sentiu até lisonjeado. Pego de surpresa e sem esboçar qualquer resistência, como era de seu caráter absolutamente ingênuo e pacífico, seguiu sereno e altivo para dentro do gaiolão, sob os olhares perplexos de todos. Ficou a observar os movimentos dos homens a quem conhecia bem. Sabia dos mistérios de cada um. Seu estado aparentemente catatônico guardava, de fato, um sentido muito próprio de percepção da realidade. Não havia dissimulação que ele não pudesse perceber. Como aquela ação pronta e pragmática foi verdadeira, reveladora da mais pura fragilidade do ser humano, Nelson seguiu sua sina sem tropegar, obediente a uma determinação humana, sem rodeios. Ele se sentiu parte de um grande espetáculo circense, para o qual a plataforma era o melhor de todos os palcos. Ali ele mesmo havia escolhido como morada. Estava em casa e todos os outros eram seus convidados. Ele era o ator principal, o centro de todas as atenções, de todos os pensamentos. Havia, no cotidiano daquela cidade a certeza de que todos eram normais e ele o demente. Mas, naquele momento, ele teve sua certeza de que era apenas o único são. A existência nos revela esses contrastes. Estavam ali na Estação, na verdade, travestidos de chapéu, aba quebrada na testa, capa preta, todos disfarçados em um só: o juiz, o prefeito, o padre, o delegado, os mais bem sucedidos fazendeiros e comerciantes da cidade, menos o banqueiro, que não via, no acontecimento, nenhuma vantagem pecuniária e foi dormir com suas contas.
Nelson Maquinista, de quem havia sido subtraída toda a roupa, para permitir aos seus algozes a visualização completa de todo o processo de mutação, à vista de todos, carapinho num canto, pediu cobertas e não foi atendido. Era preciso explicitar completamente aquele ato transloucado. Dormiu serenamente.
Uma espessa névoa encobriu a cidade e apagou o olho crítico da lua cheia. O ambiente ficou mais circunspecto, mais apavorante. Os homens procuraram, inventando pretexto para uma conversa, se agrupar. Falavam de trivialidades. A conversa era nervosa. A névoa, sorrateira, transformou o ambiente para mais intimista, fez as consciências mais hesitantes, inseguras. E o debate ficou mais e mais acalorado, até que, o prefeito, habituado ao conchavo político, tomou da palavra e passou a enaltecer a atitude corajosa e altruísta de todos os que ali se dispuseram a defender o interesse que lhe parecia o mais importante de todos, que era a salvaguarda das crianças da cidade, ameaçadas pela voracidade daquela criatura endemoniada. Apaziguou os ânimos e reconstituiu a certeza primeira sobre aquele “ato pensado”. Aplacados os nervos, perceberam que o principal poderia estar se perdendo, que era observar a mutação. E alguém bradou, “já são onze e meia”. Correram todos para frente da jaula improvisada. Silêncio sepulcral. Ninguém mexia um cílio. Podia-se ouvir a respiração de cada um. Estavam todos em transe. Somente Nelson Maquinista se mantinha em seu sono, impassível. Do mesmo jeito que dormiu, ali permanecia na mesma posição. Não mexia um dedo. Até que, ao bater da meia noite, quando todos esperavam pelo início do processo tão esperado, o infeliz rapaz deu uma virada súbita para o outro lado e todos se afastaram emitindo um oh! Em uníssono, brandindo suas resmas de alho. E tiveram a certeza da pronta manifestação do esperado. Olhavam atônitos. Esperaram. Os minutos estavam como que congelados. Alguns já podiam ver os pelos crescerem no corpo do infeliz, eriçados pelo frio. Outros viam as orelhas cada vez mais pontiagudas. Mas era pura miragem. O padre fez o sinal da cruz por três vezes e pôs-se a orar. Os outros o seguiram. E o indigente permanecia imóvel, como em estado de hibernação. Nada aconteceu, até que tivesse dada, já, uma hora. E o mesmo aconteceu até às seis horas da manhã, quando, o juiz, tendo se dado por instruído, ordenou a retirada. Daí, para reduzirem o mais possível o impacto negativo dos efeitos do vexame, trataram de pôr tudo em ordem rapidamente, e dispersaram antes das seis e meia.
Era uma vez...
Assim me contaram na Casa da Mãe Joana.
                                                                                              Edmundo de Carvalho.


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