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Este Blog, do Projeto Prex-Unitau Taubaté Tempo e Memória, tem como objetivo ser um canal de troca de informações sobre a História e a Memória da Região Metropolitana do Vale do Paraíba (RMVale).

domingo, 1 de setembro de 2013

ARTIGO - Indianidade nas rezas dos capelães de roça

INDIANIDADE NAS REZAS DOS CAPELÃES DE ROÇA
Bairro Tataúba - Caçapava e Taubaté

Maria Aparecida de Oliveira - Cida do índio


                   Quando o Tataúba era só mato, um sapo, uma árvore ou uma cobra velha, faziam os viventes se perder nele. E pra sair? Só o caipora deixando, senão não saía não!
                O caipora é o pai do mato. Ninguém sabe se ele mora na taquara, no cupim ou numa tapera abandonada pelos índios. Ele tem a criação dele: o lobo é o cachorro, a onça é o gato, o jacu é a galinha, o veado é o gado e o porco do mato é a montaria dele.
                Ele tem uma tarefa muito grande: a de olhar a criação de Tupã e de defender ela dos perigos e da morte. Por vezes, ele vira uma caça encantada: pode virar pássaro, porco, veado pequeno e pintadinho. Assim sendo, não se deve atirar em caça pintada. Ela dá meia volta e olha como se nada estivesse acontecendo! É melhor não insistir!
                Os barulhos e gemidos do mato, são o caipora, defendendo o que é seu!
                De um pai e de uma mãe índios e de seus filhos, que conviveram com tantos “encantados” neste chão batizado de Tataúba - madeira boa para pegar fogo - surgiu o bairro, ainda com muitos encantados e encantos advindos do encantamento maior da simplicidade.
                Este lugar sagrado guarda a hospitalidade, porque o visitante é emissário de Tupã e deve ser tratado com toda a deferência em longas prosas ao redor do fogo e do fogão de lenha, pausada por longos silêncios, porque a pressa não existe. Pressa para quê?
                A vida é vivida ao ritmo das estações, indiamente...
                Como num aldeamento, à moda de clãs, as famílias aglutinam-se, dos bisavós aos bisnetinhos. Todos se conhecem, há uma só família com todas as suas contingências, amores e desamores, brigas terríveis e proporcionais reconciliações. Como determina o Criador, perdoar sempre!
                Entretenimento, é a moda de viola, os “causos” e “acontecidos”, “disse-me-disses”, os forasteiros com suas novidades e os fenômenos naturais: enchentes, ventanias e temporais. E a aparição de lobisomens, estrepolias de sacis, pios agourentos da suindara e de “urutago” saudando a lua e interrompendo, assustadoramente, as artes das crianças.
                Além das águas do sagrado Paraíba, caminhando para o encontro com as montanhas, localiza-se o bairro no longo caminho, outrora percorrido por índios, escravos, tropeiros, sinhás e senhores, romeiros da Sinhá Aparecida. Tape – caminho; uçu-grande – taperuçu.
                Ali, figureiras e cesteiros fazem e refazem a arte herdada dos ancestrais indígenas: são figuras de barro e balaios de taquara, de extrema singeleza.
                Mais adiante, o patrimônio propriamente dito - casas, escola, armazéns que têm de um tudo, o ribeirão de enchentes que invade casas e traz a piracema; fartura de alimentos, com os caminhos cheirando à peixe frito. E os recendentes lírios do brejo, colhidos para brancamente enfeitar presépios e altares.
                E como não haveria de ser assim? É ela, morena como a terra dos índios, que abençoa essas paragens!
                Uma Maria da Glória da terra, Mariquinha Marcondes, pediu para glorificar a Maria do Céu e Aurélio Marcondes ergueu a Capela em 1954.
                Que outra evocação poderia ter? Nossa Senhora Aparecida! A quem clamamos a cada momento!
                Os padres de Taubaté e os franciscanos de Caçapava eram os sacerdotes do lugar. Dentre eles, Frei Sérgio Stolcis, de saudosa memória, com seu Jeep comendo poeira e sua amizade a todas e cada família, é o Apóstolo do Tataúba.
                E sob a maternal proteção de Nossa Senhora da Conceição Aparecida nas Águas, consolida-se o bairro.
                À beira do ribeirão Santa Cruz José Albino Monteiro, Zé Bernardo, a senhora Maria Joaquina de Jesus, o senhor José Benedicto Pereira, a senhora Benedita Augusta de Paula, dona Diomara Pereira, João Fragoso, Henrique Fragoso, Gustavo Alves e Maria Nicéria, senhor José Amaro, Benedito Paulino, José Moreira, Joaquim Moreira, Evaristo Nunes, Zé Bentinho, Maria Aparecida Lopes Morgado, Clemente Caetano Morgado, Vicente Mendes. Osvaldo Nani, Francisco e Lourença Pereira, eram patriarcas e matriarcas das famílias viventes neste lugar, desde tempos imemoriais.
                Herdaram de seus ancestrais, os mais remotos miscigenados e missionados com toda a riqueza da catequese inculturada do Catecismo do Beato José de Anchieta, transmitido por tradição oral através de gerações, a função de capelães de roça.
                Grandes distâncias e a exiguidade de padres, determinavam essa missão que exigia grande dedicação desses homens e mulheres que tinham Deus como centro da vida.
                Nas casas, os “quartos de santos” abrigavam a família para as rezas nas horas sagradas do dia - seis da manhã, meio-dia, antes de deitar. Cada dia da semana dedicado a uma devoção: segunda às almas, terça ao Espírito Santo, quarta à Nossa Senhora do Carmo, quinta ao Santíssimo Sacramento, sexta ao Sagrado Coração de Jesus, sábado à Nossa Senhora e domingo ao Senhor. Desfiavam terços e Rosários!
                A capelinha local, de estilo jesuítico e singeleza, objeto de grande amor e zelo, congrega ainda hoje rezas, novenas, danças, festas, foguetórios, quermesses, leilões e mesadas, farta e deliciosa comilança oferecida aos santos e distribuída aos devotos.
                Nos terreirões das casas, a Reza de Vinte e Cinco de Março, arredando satanás, as Recomendas de Almas na Quaresma ao som lúgubre das matracas, a Dança de São Gonçalo – nove rodas afugentando dores nas pernas, moçambiques à São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
                No Santo Cruzeiro, a Reza de Santa Cruz, pronunciando mil vezes o nome de Jesus e o gosto dos doces tradicionalmente distribuídos, tudo à luz fascinante da simplicidade.
                Os meses de Maria, Sagrado Coração de Jesus e santos juninos. Sant’Ana e Nossa Senhora do Carmo, do Rosário e da Padroeira florescendo os corações com seus encantos, seus anjos voejando das casas para a capela, que vira um jardim de flores colhidas das hortas nos bucólicos quintais com suas árvores, galinheiros, benfazejas plantas curativas e variegadas flores silvestres.
                Folias de Reis acordando os sonolentos devotos nas madrugadas de janeiro, Pastoril visitando o Senhor Menino, Desobrigas da Quaresma e da Semana Santa com seus jejuns, suas orações e caridades. A Festa do Divino Espírito Santo e sua bandeira com a pombinha branca visitando o devoto morador, musicalizando e colorindo dias e espíritos, derramados em louvores à Deus.
                Benzimentos de chuvas, gentes e animais e até de tiros, súplicas dirigidas aos Céus nas necessidades, aflições, adversidades e perigos, fazendo girar a roda celebrativa produzindo o fino trigo da religiosidade popular.
                Na hora triste da morte, as “Novenas de Alma”, iniciadas no velório, prolongadas por nove noites e depois mês a mês até completar um ano de falecimento e por quantos anos a família requerer a reza, traço indígena de zelo para com os mortos.
                São Benditos e Excelências entoados, orações rezadas e cantadas, ladainha em latim, tudo para rogar ao Senhor Amado, a entrada da alma no Paraíso. Quanto mais se reza, mais se quer rezar! As almas querem, pedem e favorecem as rezas! Está para cair um toró? Na hora da reza, a chuva amaina. É uma convivência solidária com a família enlutada, quando se estreitam os laços de solidariedade, amizade, parentesco e compadrismo que não se desfazem jamais!
                A casa cheira a chá de raiz de erva cidreira para acalmar os nervos. Cangalhinhas, biscoitões e por vezes cheirosos bolos são oferecidos como mimos para agradar e agradecer os rezadores pela dedicação e extremada consideração. É a morte trazendo a vida, favorecendo a espiritualidade, fortalecendo cada qual, sublimando a dor, de modo admirável.
                Os capelães vivenciando a cumplicidade com mulheres como Benedicta Augusta de Paula “quando ela rezava, tudo clareava!” e dona Maria Angélica Alvarenga - Nhá Angelina - nascida no pé da serra do Tataúba, que, aos sete anos, recebeu a Primeira Eucaristia. Só saía de casa acompanhada por pessoas de confiança e capelães, senhor José Casemiro Baptista, Henrique, Sebastião e suas famílias a buscavam e entregavam na porta da casa.
                Rezava nas chácaras, trabalhava cantando enquanto colhia café com as outras moças. Quando estava na cidade, ia na retreta, na Igreja de São Benedito que era na Praça da Bandeira e também no Mercado Municipal e no cinema.
                Até os dezesseis anos e meio acompanhava a mãe, Dona Maria das Dores de Jesus, no cuidado aos mortos, confeccionando mortalhas, tudo no maior capricho, com direito a galão dourado enfeitando.
                Aos dezessete anos casou-se, perdeu a mãe e fazia às vezes dela, continuando sua missão, levava os filhos, todos pequenos, para a casa do falecido. Uma esteira de piri era estendida e eles ficavam ali quietinhos, enquanto ela, ponto por ponto, tecia a mortalha, nas noites compridas das guardas-de-corpo.
                Ela vestia saia de sete panos, comprida, franzida e usava xale cobrindo a cabeça. E assim viveu por toda a vida, capela até aos noventa anos, quando foi pranteada por todos que cumpriam a desobriga por sua alma.
                Nhás e nhôs erguendo suas vozes em louvor à Deus, com compridas orações que sabiam sem saber ler, sem escrever, de tanto rezar desde criancinhas, legaram tesouros de ensinamentos: “Meu pai era tão católico, que o diabo, quando passava por ele, virava a cara!” afirma o filho de um capelão.
                Capelães e pajés, ambos de cultura ágrafa e intensa sabedoria. De tradição oral perpetuando o gen do Temor a Deus, saindo de suas casas no lusco-fusco do anoitecer, sentando-se ao redor do fogo das fogueiras e das velas, empunhando matracas, sinetas e taquapus: bambu que batido no chão vibra uma sinfonia ritmada, vinda do coração da terra, para alcançar o coração do Céu!
                Suas vozes cantam alto, para serem ouvidas até nas estrelas, os pajés revelam oráculos de Deus: “A Palavra de Deus não morre, mas por hora ela descansa.” Os capelães advertem: “Que conta vamos dar praquele Senhor que nos há de julgar?”
                Eles consolidam o Paraíso que virá neste rincão valeparaibano, porque está no sangue de seus descendentes perpetuar seu legado: zelar das almas, zelar da capela, cuidar do Santo Cruzeiro e enfeitá-lo para a Reza de santa Cruz, reverenciar o “Quarto de Santos”, preparar o  bolo de arroz socado no pilão e paçoca para servir no terreirão na Reza de Vinte e Cinco de Março. Ir à Taubaté comprar tecido para confeccionar a Bandeira do Divino que acompanhará a Procissão toda vermelha e linda - amor de Deus para todos os viventes.
                Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Para Sempre Seja Louvado! Os capelães O Perpetuam!


O tema acima foi apresentado pela Cida no XXVII Simpósio de História do Vale do Paraíba

 Maria Aparecida de Oliveira e seu marido Adão em palestra no curso de História da UNITAU. 
Acompanhados pelos professores Rachel Abadala e Boll

 Maria Aparecida de Oliveira com alunos do curso de História da UNITAU no Bairro do Tataúba

Reza de 25 de Março - Bairro do Tataúba

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