Quem sou eu

Minha foto
Este Blog, do Projeto Prex-Unitau Taubaté Tempo e Memória, tem como objetivo ser um canal de troca de informações sobre a História e a Memória da Região Metropolitana do Vale do Paraíba (RMVale).

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Taubaté Tempo e Memória - 004 - Igreja de Nossa Senhora do Rosário - A


PATRIMÔNIO: Igreja de Nossa Senhora do Rosário
FICHA Nº: 004-2019


DESCRIÇÃO
Igreja construída no séc. XVIII por uma ordem, composta em sua maioria, de escravos e ex-escravos. Arquitetura século XIX predominância de gosto neoclássico com alguns detalhes historicistas, por exemplo, janelas com arco neogótico. Taipa de pilão, plauta da única com corredor lateral.

Predominância do gosto neoclássico com detalhes historicistas, por exemplo, janelas com arco neogótico. Taipa de pilão, frontão triangular, pilastras com frisos clássicos, capitéis clássicos coroando os pilares, registros de janela balcão na lateral da igreja, arco cruzeiro separando a nave da capela Mor, trabalho de marcenaria e coroamento, uma arquitetura do século XIX.

Referencia: Consulta realizada com o professor Mestre
BENEDITO ASSAGRA RIBAS DE MELLO


PROPRIEDADE/COORDENADOR
Diocese de Taubaté.

USO ATUAL
Templo religioso católico - Fechado para restauração.

HISTÓRICO
Primeira capela – 1700/1705; Igreja atual – 1882. - Taipa de pilão.

A primeira capela de Nossa Senhora do Rosário foi construída entre os anos de 1700 e 1705 pela irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos, que tinha esse nome justamente por ser constituída de escravos e ex-escravos. Devido à falta de posses dos membros da irmandade, a antiga capela acabou se deteriorando e isso motivou, no ano de 1860, um movimento em prol da sua reforma. Segundo as atas da Câmara de Taubaté, no ano de 1879, a Igreja já tomava o formato atual (ainda que a construção só terminasse em 1882). No ano de 1925 tornou-se Paróquia. Entre os anos de 1930 e 1938, como consta no Livro do Tombo do Santuário de Santa Teresinha, a Igreja do Rosário passou por uma reforma e no ano de 1940 tornou-se Catedral Provisória para reparos na Catedral de São Francisco das Chagas. Entre 1950 e 1953, conforme várias fontes da época, a Igreja encontrava-se em estado precário e novamente passou por uma reforma. No ano de 2012, a Igreja foi novamente fechada para reformas.

OBSERVAÇÕES
01.    Pesquisa da Professora Olga para a elaboração do livro dos 100 anos da Diocese de Taubaté; Atas da Câmara de Taubaté e Livros de Tombo das igrejas de Taubaté como a Catedral e o Santuário de Santa Teresinha. Almanaque ilustrado 1905. Jornal voz com uma publicação de 21 de julho onde se encontra um exemplar na biblioteca do museu de Taubaté. Carta que trata das Igrejas que se relacionavam com as paroquias de Taubaté na década de 40.
02.    A Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos é um dos templos mais antigos da região. Como o nome indica foi uma igreja construída pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que tem esse nome justamente por ter sido composta no passado, principalmente por escravos e ex-escravos.
03.    As Irmandades Religiosas tinham grande importância e eram influentes na sociedade colonial, pois eram as responsáveis pelo norteamento do modo de vida de seus membros, auxiliando nas obras de caridade e, até mesmo, na divisão social do Brasil colonial.
04.     A primitiva igreja foi construída entre os anos de 1700 e 1705. No início do século XIX, a igreja encontrava-se em um estado lastimável de conservação e, somente depois de uma campanha, em 1860, teve início sua maior reforma. Vinte e dois anos depois, em 1º de novembro de 1888, foi  oficialmente inaugurado o novo templo.
05.     No ano de 1925, a igreja tornou-se Paróquia da Diocese de Taubaté. Há alguns registros de reformas entre os anos de 1930 e 1938. Em 1940, finalmente,  tornou-se Catedral Provisória da Diocese de Taubaté quando houve, nesse período, a reforma da Catedral de São Francisco da Chagas.





01. III Congresso Internacional de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento

Autores: Ana Carolina de Oliveira (ana_car19@yahoo.com.br)
Adriel Vieira de Araujo(adrielaraujo09@hotmail.com)
Orientador:Armindo Boll (armindo.boll@bol.com .br)


A IGREJA DOS ESCRAVOS EM TAUBATÉ:
UM PATRIMÔNIO CONSTRUIDO POR POBRES MÃOS NEGRAS

Apresentação
Com o crescimento da vila de Taubaté, o aumento de sua população e o número de escravos cativos, as aspirações religiosas deram início ao surgimento das primeiras irmandades formadas por leigos. As primeiras foram criadas na igreja Matriz, uma dessas irmandades foi a dos “Homens Pretos”, dando origem a capela de Nossa Senhora do Rosário (1700-1705).
As principais irmandades eram conhecidas como associações de altar-mor, enquanto que as demais se abrigavam na mesma igreja, por não possuírem patrimônio material suficiente para a construção de seu próprio templo, ocupando altares laterais através dos quais, os membros de sua confraria exerciam o petitório, em louvor a seu respectivo santo padroeiro, com o objetivo de edificar uma igreja de uso próprio.
A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos congregava uma grande parcela da sociedade local, representada na figura dos membros mais humildes, irmãos escravos, livres, alforriados e pobres, cujos papéis e funções estavam voltados para a promoção dos festejos anuais.
As irmandades foram uma das formas de a cultura negra a ser incorporada pelo catolicismo e de alguma forma se relaciona com sagrado.
Hoje a Irmandade Nossa Senhora do Rosário é patrimônio histórico e cultural da cidade de Taubaté, apesar de encontrar-se interditada e parte de sua estrutura estar comprometida.

Objetivos
O objetivo deste trabalho é pesquisar a origem da Irmandade dos escravos, a construção da sua Igreja buscando mostrar a importância dela como patrimônio da cidade e sua relação com a sociedade taubateana.

Metodologia
Para este trabalho foi adotada a metodologia da pesquisa bibliográfica, com documentos da imprensa taubateana, localizado no Arquivo Municipal de Taubaté e na Cúria Diocesana, com jornais datados desde o século XIX.

Resultados
Hoje a Igreja Nossa Senhora do Rosário é patrimônio histórico e cultural da cidade de Taubaté, apesar de encontrar-se interditada e parte de sua estrutura estar comprometida.

Conclusão
Concluímos que, mesmo com sua importância histórica, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário não obtém o apoio de grande parcela da população taubateana, que vê seu patrimônio se perder com o descaso dos setores responsáveis por sua manutenção e preservação. 


02. Almanaque Taubaté
Esta igreja foi fundada nos anos de 1700-1705, como se depreende da provisão do bispo do Rio de Janeiro d. Francisco de São Jerônimo, passada a 20 de agosto de 1705, na qual aprovou o compromisso da irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos, pelo qual eles se obrigaram a ornar e paramentar esta igreja que eles edificaram.
Funcionava anteriormente esta irmandade em um altar da igreja matriz.
Pelo mau estado, em que se achava esta capela no ano de 1861 e prestes a cair, deliberou a mesa da irmandade reedificá-la e por isso fez transferência de suas imagens e vasos sagrados para a igreja matriz, em 20 de junho de 1862.
Tendo faltado recursos à irmandade afim de levar avante a conclusão do seu templo, associaram-se 20 cidadãos, e tomaram a si a conclusão da obra, a qual está feita com solidez e elegância.
Esta comissão é composta dos senhores major Francisco Fernandes de Oliveira e Silva, comendador José Rodolfo Monteiro, tenente-coronel Mariano José de Oliveira e Costa, e José Gabriel Monteiro.

A origem da igreja do Rosário, de Taubaté prende-se à irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos que funcionava, 1.º , em um altar da igreja matriz. Entre 1700 -1705, essa irmandade edificou a capela do Rosário, conforme se deduz a provisão passada a 20/8/1705, pelo bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de São Jerônimo, aprovando o compromisso pela irmandade de ornar e paramentar essa igreja, por ela edificada.
Pelos idos de 1862 a capela achava-se em péssimo estado e sujeita a cair. Em 20/6 deste ano, desejando reedificá-la, a irmandade transferiu as imagens e vasos sagrados para a matriz. Como não possuísse recurso para, uma vez iniciado, prosseguir no empreendimento, foi constituída uma comissão composta do major Francisco Fernandes de Oliveira e Silva e Rodolfo Monteiro, coronel Mariano José de Oliveira e Costa (depois barão de Pouso Frio) e José Gabriel Monteiro, com o fito de levar a cabo a construção do templo. Em meado de 1879 as obras já se achavam bem adiantadas.
Colaborou também para esse empreendimento José Félix Monteiro (barão, depois visconde de Mossoró). (dr. José Bernardo Ortiz Monteiro in “Velhos Troncos” – Apontamentos Genealógicos e Biográficos- Taubaté -  1963 – Livro 8º - Notas Complementares – pág. 303-304).


03. DOSSIÊ: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NA DIÁSPORA ATLÂNTICA
Entre o campo e a vila: devoção e sociabilidade de escravizados e libertos na Irmandade do Rosário dos Pretos de Taubaté - século XIX
Between the Field and the Village: devotion and sociability of slavery and liberty in the brotherhood of the Rosary of the Blacks of Taubaté - the XIX century
Fábia Barbosa Ribeiro

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
São Francisco do Conde, BA, Brasil

RESUMO
O presente artigo, apoiando-se na constatação da ausência de pesquisas acerca das irmandades de pretos constituídas no âmbito rural, procura contribuir com uma breve análise a respeito da “Confraria dos Homens Pretos da Irmandade do Rozario” de Taubaté, cidade do Vale do Paraíba Paulista, que se transformou na segunda metade do século XIX, juntamente com Bananal, em sustentáculo da economia imperial brasileira. Através do cruzamento de fontes diversas, foi possível empreender um esforço de aproximação com os irmãos do Rosário de Taubaté, identificando-os nos plantéis de seus proprietários, no caso daqueles escravizados, e ainda constatar a participação de livres e libertos, brancos e pardos no interior da irmandade. A convivência dos pretos do Rosário com uma gama variada de tipos sociais denota a importância dessa irmandade como um espaço estratégico de circulação de cativos e libertos entre o eito e a vila, possibilitando ainda a interação destes com a sociedade mais ampla
Palavras-chave escravidão; liberdade; Irmandades de homens pretos; sociabilidade
This article, based on the lack of research on the black brotherhoods constituted in the countryside, seeks to contribute with a brief analysis about the “Brotherhood of Black Men of the Brotherhood of the Rozario” of Taubaté, a city in the Paraíba Valley Paulista, which was transformed in the second half of the nineteenth century, together with Bananal, in support of the Brazilian imperial economy. Through the crossing of diverse sources, it was possible to make an effort to approach the brothers of the Rosário de Taubaté, identifying them in the plots of their owners, in the case of those enslaved, and also to note the participation of free and freedmen, whites and pardos in the inside the fellowship. The coexistence of Rosario’s blacks with a varied range of social types denotes the importance of the brotherhood as a strategic space for the movement of captives and freedmen between the village and the village, enabling their interaction with the wider society.
Keywords slavery; freedom; Black men's brotherhoods; sociability

De roça à vila: Taubaté nos caminhos da Piedade.
O Vale do Paraíba Paulista tornou-se durante a segunda metade do século XIX, sustentáculo da economia imperial brasileira, região marcada naquele período, pela existência de áreas de grandes plantations e de uma expressiva população africana (LUNA; KLEIN, 2010). A vila de Taubaté foi povoada no contexto da expansão bandeirante e de descoberta da área mineradora, empenho audacioso da coroa portuguesa em expandir e dominar territórios mais ao interior do Brasil. A descoberta de jazidas de ouro e pedras preciosas na região que ficaria conhecida como Minas Gerais, fomentou uma horda de aventureiros que se lançou em busca de riquezas minerais e no escopo do preamento indígena, o que levou a metrópole a intensificar a exploração local e a conceder benefícios aos que estivessem dispostos a ocupar inóspitas extensões de terra.
A abertura dos caminhos que levavam o ouro das minas até o porto de Parati, onde era embarcado para o Rio de Janeiro, propiciou o povoamento da região vale-paraibana através do surgimento de pequenos lugarejos, locais de passagem e de estalagem dos tropeiros que subiam e desciam com seus muares para abastecer a crescente população mineira. Em Taubaté e Guaratinguetá, por exemplo, por volta de 1701 foram instaladas casas de fundição nas quais o ouro deveria ser derretido e transformado em barras que levariam o selo real antes de prosseguir viagem até o Rio de Janeiro. A consequência imediata foi um povoamento mais consistente dessas vilas e a intensificação da produção e circulação de gêneros de subsistência que sustentariam a economia local da região aurífera. Por esses caminhos não circulavam apenas riquezas e mantimentos, os “negros” que auxiliavam no transporte eram cada vez mais numerosos.
A descoberta de jazidas na área mineradora fez afluir com maior intensidade a mão de obra africana ao Vale do Paraíba. Luna e Klein apontaram como sinal evidente do desenvolvimento da província de São Paulo, o “notável crescimento da população de escravos negros depois de 1700”, uma vez que “a força de trabalho, antes principalmente indígena, passou a ser dominada por brancos livres e africanos cativos” (2006, p. 39). Corroborando essa perspectiva, encontramos em 1717, o seguinte relato do Conde de Assumar:
Sahimos com bom sucesso da bahia e fomos jantar a villa de Paraty em caza do Capitão Lourenço Carvalho que nos regalou magnificamente. Elle he natural da Villa de Basto, e cazado com huma mulata filha de Francisco Amaral: he muy rico, e poderozo; porque se acha com trezentos negros, que lhe adquirem grande cabedal com a condução das cargas, em que continuamente andão serra assima, q. vay a sahir a Villa de Guaratingueta: que por ser tão aspera não podem subir cavallos carregados, e lhes he preciso aos viandantes valerse desse meyo para poder seguir a sua viagem, para as Minas (NETO, s/d, p. 298, grifos nossos)
O testemunho produzido por Assumar, nos mostra que os “negros” circulavam por aquelas paragens em relativa quantidade já nas primeiras décadas do século XVIII. No caso de Taubaté, segundo Maurício Martins Alves (1998), no período de 1680 a 1729, a descoberta do ouro agilizou as atividades mercantis e fomentou “a remontagem da atividade açucareira”. Tal quadro econômico traria como consequência a paulatina substituição do indígena pelo africano já nas primeiras décadas dos setecentos. Na segunda metade do século XIX o café já dominava a agricultura local, em detrimento do cultivo de cana de açúcar e das roças de gêneros de subsistência. Essas culturas não desapareceriam de todo, como o café apresentasse um período longo de maturação, era necessário garantir a sobrevivência plantando simultaneamente milho, arroz, mandioca, havia ainda a criação dos muares, característica comum a quase todas as regiões da província de São Paulo.
A expressividade dos lucros obtidos com a cafeicultura, em breve, faria com que os fazendeiros mantivessem as culturas secundárias apenas para comercialização interna (LUNA, KLEIN, 2006, p. 102-103). Em 1852, por exemplo, a Câmara Municipal de Taubaté observaria que: “o município na sua quase totalidade entrega-se á cultura do café” (RANGEL, 1998, p. 352). Para uma ideia da grande transformação pela qual passou a economia taubateana nesse período, observemos os dados apontados por Daniel Pedro Müller (1923, p. 124), concernentes a 1836. Naquele ano verificou-se que a produção cafeeira no município atingira a marca de 23.607 arrobas, pouco mais de 6% do percentual que seria produzido menos de vinte anos depois. No que tange ao censo demográfico da população Müller (idem, 154-156) apresentou os seguintes números (Quadro 1):
Quadro 1 
População Total
11.833
Brancos
6.695
Pardos livres
1.442
Pardos captivos
1.035
Pardos - Total
2.477
Pretos crioulos livres
87
Pretos crioulos captivos
1.265
Pretos crioulos - Total
1.352
Pretos africanos livres
5
Pretos africanos captivos
1.304
Pretos africanos - Total
1.309


A partir do quadro acima, verifica-se que a população não branca, considerando-se pretos e pardos, ainda não atingira o mesmo patamar de brancos. Os pretos (crioulos e africanos) mostravam relativa igualdade numérica entre si e certa superioridade em relação aos pardos, cujo número de livres já era maior que o de cativos. Entretanto, em poucos anos a população de Taubaté aumentaria consideravelmente. Em 1854, cerca de vinte anos depois do levantamento apresentando por Müller, a cidade já contava com 17.700 moradores, dos quais 4.345 eram escravos, cerca de 30,34% do total (SOTO, 2001, p. 35). Naquele mesmo ano, Taubaté adentraria ao universo das economias agroexportadoras e alcançaria o patamar de segunda maior cidade produtora de café do país, com 354.700 arrobas da rubiácea, superada apenas pelo município de Bananal (SOBRINHO, 1978, p. 24).
Foi nesse contexto de crescimento populacional, econômico e de intensa circulação de mão de obra africana, na passagem de roça à vila, que Taubaté viu surgirem e florescerem irmandades constituídas por homens e mulheres negros. Objeto de nossa análise, a “Confraria dos Homens Pretos da Irmandade do Rozario”, foi inaugurada em fins do século XVII, quando um grupo de escravizados estabeleceu um pequeno altar no corredor lateral da Igreja Matriz de São Francisco e nos primeiros anos do século seguinte já funcionaria em templo próprio. Segundo Bernardo Ortiz (1988, p. 593): “a 20 de agosto deste último ano [1705], o bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de São Jerônimo aprovava, em provisão, o compromisso da Irmandade em ornar e paramentar a pequena Igreja”. Localizada à Rua do Rosário, a construção ocupou um lugar de destaque na paisagem da então pequena vila de Taubaté e se mantém preservada até os dias atuais.
Os pretos do Rosário de Taubaté: sociabilidades possíveis
Em 1805, exatos cem anos após o pedido para ornamentação de sua própria igreja, o registro de uma reunião da irmandade evidencia a movimentação em torno da reforma do seu compromisso e atesta a sua longevidade. Em novembro daquele ano, os membros da irmandade do Rosário dos Pretos de Taubaté reuniram-se na presença do procurador, José Moreira de Gouveia, do tesoureiro, o Tenente Coronel Claudio José de Camargo, e ainda do vigário Bento Cortez de Toledo. Também estavam presentes naquela ocasião, o juiz da irmandade, Francisco (escravo do Convento de Santa Clara) e o rei e rainha, denominados no documento como: “suas alteza real”(sic). Sem acesso ao compromisso original, a partir desse documento, é possível reconstruir a composição da irmandade no que tange ao seu aspecto administrativo e elaborar algumas reflexões.
A distribuição de cargos nas irmandades de homens pretos atendia a uma dinâmica de funcionamento própria e seguia uma rigorosa hierarquia social. Os que conferiam maior poder e prestígio eram os de rei, rainha, juiz e juíza. A maioria das confrarias impunha que fossem ocupados apenas por homens e mulheres pretos (africanos ou crioulos) e as suas atribuições podiam variar de uma para outra. Em geral, além do voto de minerva, cabia à realeza zelar pela organização das festas de orago, fiscalizar o recolhimento de esmolas, organizar exéquias e missas, bem como arbitrar em casos de dissenso entre os irmãos. Em algumas irmandades, deveriam também vigiar os tesoureiros, responsáveis por registrar e guardar as rendas da entidade, cargo em geral exercido por homens brancos “de boa consciência” (RIBEIRO, 2017).
A presença da realeza na hierarquia das irmandades de pretos esteve desde sempre fadada a inúmeras controvérsias. Em determinados contextos, a autoridade dos “reis negros” foi contestada ou até mesmo rejeitada. Como por exemplo, em um caso ocorrido no Arraial do Tijuco no século XVIII, no qual um morador local, cujo escravo encontrava-se preso, foi aconselhado a procurar o rei da irmandade do Rosário a fim de que este intermediasse a sua soltura. Ao que o proprietário recusou-se terminantemente, por não aceitar reportar-se a um “rei negro”. Em que pese a recusa, revela-se, neste caso, a presença do rei exercendo a função de arbitrar em nome dos seus irmãos (BORGES, 2005 p. 84-85).
Alguns estudiosos discordam do papel decisivo desta realeza. João José Reis, por exemplo, menciona que em geral, as celebrações das confrarias negras entronizavam uma monarquia fictícia, na qual reis e rainhas ocupavam cargos “meramente cerimoniais” (1991, p. 62). Ainda assim, é possível afirmar que estes postos revestiam-se de prestígio na hierarquia das confrarias. Algumas delas, mesmo não mencionando a existência dos cargos de rei e rainha em seus compromissos, mantinham a cerimônia de coroação durante as festividades de orago como parte importante de sua devoção. (SOUZA, 2002, p. 194).
Os juízes e juízas eram incumbidos de representar a irmandade frente aos poderes leigo e eclesiástico. Entre outras atribuições, deveriam zelar pelo comportamento dos irmãos, dos quais se exigia uma postura cristã exemplar: sem vícios, envolvimento em brigas, feitiçarias ou relações de concubinato. Em certos casos, realeza e juizado se confundiam ou disputavam o poder entre si; em outros tantos, invertia-se a lógica de supremacia e de funções, havendo disputas entre juízes e reis no tocante ao comando da confraria, rivalizando-se a importância de ambos os cargos diante do grupo ou mesmo da sociedade mais ampla. Tal como em um episódio ocorrido na Irmandade do Rosário de Caquende, da Freguesia do Pilar (Vila Rica), que em seu compromisso expressou a recusa de juízes e juízas em buscarem o rei e rainha da confraria “à sua porta”, e, inclusive, em esperá-los à “porta da igreja”, uma vez que a espera levaria ao atraso no início das festividades, o que não era justo com a Irmandade que ficaria “parada e o povo esperando por eles até a hora que quiserem vir” (BORGES, 2005, p. 86-87).
De volta ao Rosário dos Pretos de Taubaté, podemos observar a interação entre juízes e realeza durante a reunião que deliberou sobre a reforma do seu compromisso e ainda verificar a frequência dessa presença conjunta, através da análise do seu livro de entradas, no qual se registraram as eleições e posses dos irmãos entre os anos de 1805 e 1812 . No que tange à composição da mesa diretora, podemos observar através deste documento que, em um período de sete anos, os cargos de rei e rainha foram ocupados na maioria das vezes por escravizados. Notadamente, nos primeiros anos do período apurado, o cargo de juiz também obedeceu a essa tônica. O escravo de Santa Clara, Francisco, por exemplo, seria reeleito como juiz naquele mesmo ano de 1805, para administrar a irmandade ao lado dos escravos Antonio Francisco e Luzia, eleitos rei e rainha, respectivamente.
É importante destacar duas exceções: no ano de 1809, estariam ausentes irmãos escravizados dos principais postos; e em 1810, apenas o cargo de juiz seria ocupado por um escravo, Francisco, de propriedade do AlferesAmaro. Contudo, nos dois anos seguintes, os eleitos seriam novamente escravizados, à exceção da liberta Domingas, escolhida para servir como rainha no ano de 1812. Não obstante a baixa presença de escravizados nos cargos de comando em 1809 e 1810, a lista dos presentes durante as eleições daqueles anos revela a presença de outros irmãos nessa condição:
1809
(…)
Irmaons de Meza
O Ir. Francisco Leite de Moraes
O Ir. Manuel Cabral de Camargo
José Andrade da Silva
José Gonçalves da Silva
Antonio de Siqueira
Francisco escravo do AlferesAmaro
Joze escravo
Salvador escravo
Furtuozo escravo de Margarida Florinda de Jesus
Mathias escravo
Irmans de Mesa
Domingas escrava do falecido Lourenço Gouveia
Francisca da Silva Leme mer de Francisco Montemor
Micaela de Jesus mer. de Antonio Francisco de Faria
Maria escrava do Alfes. Joze Antonio Nogueira
Francisca Maria de Castilho mer de Salvador Porttes
Florencia mer de Francisco Gonçalves
Quiteria Francisca mer de Bazilio Moraes
Thereza Izabel Lopes
Antonia de Jesus
1810
(…)
Irmaons de Meza
Ricardo Joze Cortes
Paulo escravo do Tenente Coronel Claudio Joze de Camargo
Ignacio escravo do AlferesAmaro
Antonio escravo do Capm. Francisco Ramos
Bernardo escravo de D. Margarida Florinda de Jesus
Sebastiam escravo que foi do Capm. Marzagam
Francisco Matheos de Camargo
Joaquim Pires filho de Antonio Pires de Cassapava
Vicente Ferreira de Morais
Januario Pereira
Joam da Cruz da Gloria
Irmans de Meza
Izabel escrava de Bazilio Moreira
Maria escrava que foi de Thomaz de Villanova
Maria Francisca filha de Matheos Martins
Catherina Alzs. Thenoria mer de Manuel Andrade
Izabel escrava de Pedro Francisco de Toledo
Maria filha de Francisco de Freitas de Andrade

Ainda que este fragmento do documento apresente diversos trechos em mau estado de conservação, no tocante ao ano de 1809, além dos nomes acima transcritos, podemos observar mais quatro nomes entre os irmãos de mesa, que, embora ilegíveis, nos permitem identificar a sua condição de escravizados. No que diz respeito às irmãs, constam também cerca de seis nomes ilegíveis que, somados aos já transcritos, totalizam doze irmãs presentes à mesa, entre as quais ao menos três eram cativas. Sendo assim, podemos afirmar que naquele encontro, dos vinte e seis presentes, doze eram escravos, entre homens e mulheres, e ainda apontar uma incidência menor dessa condição entre estas últimas. Mas avancemos ao ano seguinte a fim de explanar mais sobre esse assunto.
No tocante ao ano de 1810, podemos observar novamente a presença de irmãos escravizados. Neste caso, entre os homens, num total de onze presentes temos quatro escravos e um liberto, Sebastiam (sic), “que foi do Capm. Marzagam”. Entre as mulheres, visualizamos seis irmãs, entre as quais duas escravas e uma liberta, Izabel, que havia sido propriedade de Pedro Francisco de Toledo. Em estado ilegível, contudo possível de serem computados, encontram-se mais seis nomes, entre os quais figuram duas escravas. Sendo assim, dentre os vinte e três irmãos presentes à mesa naquele ano, oito eram escravizados. Desta feita, os números estão equilibrados, registrando-se a presença de quatro cativos para cada lado, um aparente declínio em relação ao ano anterior.
Importante destacar que não se encontram incluídos neste total, a realeza e tampouco os confrades que assumiram cargos administrativos. Nesse sentido, considerando-se os ocupantes dos principais cargos de comando (rei, rainha, juiz e juíza, procurador, tesoureiro, escrivão, mais o “vigilante vigário”), que deveriam comparecer obrigatoriamente às reuniões e acrescentando-se a este número os demais “irmãos de mesa”, obtém-se, no mínimo, cerca de trinta confrades reunidos a cada encontro. Ainda em 1810, seriam acrescidos novos cargos cujos membros eleitos foram devidamente registrados:
Capm. Do Mastro
O Ir. Miguel dos Santos escravo de Dona Margarida Trindade
Alferesde Bandeira
O Ir. Januario Pereira
Juiz de Promessa
Lauriano escravo do Alfes. Amaro
Juiza de Promessa
Maria Joze filha do falecido Joam do Prado Correa
Juizas de Ramalhete
Maria da Conceição mer. Do Alfes. Antonio [ilegível] Pinto
Marta de Souza viuva de [ilegível] Angelo
Gertrudes Pereira Cardozo viuva
Francisca Moreira mer. de Salvador Portes
Maria do Rozario viuva
Sancha Maria mer de Antonio Pinto de Carvalho
Maria mer de Francisco Antonio de Souza
Vicencia escrava de D. Margarida Florinda. (grifos nossos)

Ainda que entre estes nomes figurem apenas três escravos: Miguel, Laureano e Vicencia, é de extrema relevância destacar que justamente naquele ano de serviço de 1810, no qual apenas o cargo de juiz fora ocupado por um escravo, tenham surgido novas funções, algumas das quais devidamente apropriadas por irmãos cativos. Vicencia, propriedade de Dona Margarida Florinda (esta última, figura recorrente em toda a documentação referente a esta irmandade e da qual falaremos mais adiante), uma escrava eleita juíza de ramalhete em meio a “distintas senhoras”, entre casadas e viúvas, a reforçar a circulação de pessoas de diferentes esferas sociais no interior do Rosário dos Pretos de Taubaté, naqueles primórdios do século XIX.
Notem-se as sugestivas variantes para juízes e rainha, bem como os novíssimos cargos de alferesde bandeira e capitão de promessas e de mastro. É preciso pontuar dois fatores importantes: estes cargos não existiam antes, foram criados no ano anterior, justamente no momento em que apenas irmãos livres compunham a realeza e a administração da irmandade; por fim, que apesar da ausência dos irmãos cativos no corpo diretivo naquele ano, estes representavam quase cinquenta por cento dos presentes na mesa deliberativa.
Face aos conflitos e disputas internos pela ocupação de cargos no interior das irmandades, captados por diversos trabalhos (REIS, 1991SOARES 2000SOUZA 2002), é possível inferirmos que a criação de novos cargos na hierarquia do Rosário de Taubaté, se relacione à existência de tensões internas que possam ter motivado a gestação de outros espaços de poder ou mesmo de destaque entre aqueles irmãos pretos. João Reis, por exemplo, menciona o caso da Irmandade do Rosário dos Pretos de Camamu que entre os seus dez juízes estabelecia o seguinte: “os juízes serão homens pretos, entre os quais deve um deles, o de mais discurso, falar por si e por todos” (1991, p. 54-55). Bem próxima ao Rosário de Taubaté, a Irmandade de São Benedito dos Pretos Cativos de Guaratinguetá, estabelecia em seu compromisso de 1757 que:
Cap. 1º - Serão admitidos nesta Santa Irmandade todos os Pretos assim homens, como molheres, pardos, assim forros, como cativos. q. a Meza admitir conforme seu bom procedimento. Não se admitindo quem for escandalozo no viver, e viciozo: e se algum depois de admitido viver com escandalo será pella Meza admoestado, e penitenciado primeira, segunda, e terceira vês, e não se emendando, será expulso da Irmandade.
E querendo algua pessoa branca entrar nesta irmandade, com parecer da meza sera admitida, mas não poderá ter voto, nem cargo algu, senão o q. abaixo se declara.
Cap. 2º - Tera esta Irmandade hum Rey, huã Rainha, hum Juiz e huã Juiza de vara, outro juiz, outra juiza de Ramalhete, hum Procurador, hum Thezoureiro, hum Escrivam, hum andador, e seis Irmãos de Meza, e os Officiaes q. o Rey nomear: q. todos cuidarão no augmento da Irmandade.
Cap. 3º - No Domº antecedente a festa, ou noutro dia q. a mesa conveniente for se fará eleição dos Irmãos q. hão de servir na forma seguinte. Juntos em meza o Rey, Escrivam, Juizes, Procurador, Thezoureiro, com R. Vigário, proporão três irmãos para cada cargo, e depois darão os maes irmãos seus votos per si, tendo o Rey dous votos, e havendo empate tera maes o Rey o seo decisivo, e os q. tiverem maes votos serão obrigados a asseitar, e estes Officiaes nomearão aos Irmãos de Meza, e Andador, e esta eleição será publicada no dia da festa: e querendo algu Irmão por sua devoção ou promesa ser Rey ou Juiz ou outro cargo, com parecer da Meza podera ser admitido, e em tal cazo não se fara mais nominata para esse cargo senão para os outros.
Cap. 11º - Ao Rey como principal Cabeça compete a mayor zello e cuidado advertindo e emendando as faltas dos maes Irmãos, e penitenciandos, quando forem omissos, ou por si so ou com a Meza, dando bom exemplo, confessandose a Meudo, e fazendo q. os mes Irmãos se confesse, e assistão ao Terço de Nossa Snrª e a doutrina com devoção. (grifos nossos).
Além de prever a existência de quatro juízes (vara e ramalhete), os excertos do referido compromisso demonstram a importância do rei como “principal Cabeça”, na escolha dos membros, do zelo pelos irmãos e de seu voto de minerva. Note-se que apesar de permitir a entrada de irmãos brancos, prevista em outro capítulo apenas para os cargos de tesoureiro e procurador, o compromisso não lhes permitia o direito ao voto. A importância da ocupação desses cargos reside também no fato de que por ocasião das procissões e festas de orago, coroados e dirigentes saíam publicamente sempre à frente do cortejo, primazia que denotava privilégio e trazia visibilidade frente à sociedade mais ampla.
Também por conta dos enterramentos, nos quais o fausto durante as exéquias e missas solenes, dentro das condições da irmandade, estaria assegurado àqueles que tivessem ocupado posições de prestígio, assim como a certeza de sepultamento em “bons lugares”, no interior ou adro das igrejas. A criação de novos cargos assegurava ainda o aumento de divisas para as irmandades, uma vez que quanto mais elevado o posto, maior a contribuição dos irmãos. Mariza de Carvalho Soares (2000, p. 183), encontrou o artifício da duplicação dos cargos de juiz e juíza como forma de aumentar a receita ao analisar o compromisso da Irmandade de São Benedito e Santo Elesbão do Rio de Janeiro. A respeito do incremento de recursos, no caso do Rosário de Taubaté, vejamos o seguinte registro presente no livro de registro de entrada de irmãos, que nos permitirá ampliar essa discussão com outras informações:
Entrada de Josefa escrava de Domingos Joze de Castilho. Aos 27 de Dezembro de 1809, entra pa. esta Irmandade Josefa, escrava de Domignos Joze de Castilho, com lissensa de seo senhor, sogeitando-se e obrigando-se as leiz da mesma Irmde. E por nam saber escrever assigna a seu rogo o Escrivam e juiz a cruz, e eu Manuel Pinto Barboza, escrivam da Irmde. o escrevi. A rogo e signal do juiz da Irmde. Gonçalo Francisco Cruz e signal do juiz da Irmde. Gonçalo+Francisco A rogo Manuel Pinto Barboza. (grifos nossos)
Josefa entrou para a irmandade na condição de escrava, no ano de 1809. Seu registro permite saber que contribuiu por um período de pouco mais de 20 anos com alguns atrasos devidamente quitados. A ausência de recursos, uma enfermidade ou mesmo o trabalho como escrava podem tê-la afastado da confraria durante algum tempo, todavia, a inadimplência não significa necessariamente que estivesse fora dela. Logo depois de sua filiação, Josefa ocuparia consecutivamente os cargos de juíza e mesária. Como simples irmã, contribuía com uma anuidade no valor de $160 réis. As funções de prestígio que exerceu lhe custaram 2$000 e $320 réis, respectivamente.
Se quisesse coroar-se rainha da irmandade, Josefa teria de desembolsar a quantia de 4$000 réis, valor similar ao de seu companheiro de reinado. No entanto, se quisesse acompanhar Vicencia e as “distintas senhoras” naquele ano de 1810 como juíza de ramalhete, desembolsaria menor valor, cerca de 1$000 réis. Sobre Josefa, encontramos um importante detalhe junto ao seu registro de entrada na irmandade. Trata-se de uma pequena nota lateral na qual se pode ler: “hoje agregada a [ilegível] Ignacio Vieira”. Esta inscrição, além de revelar um pouco mais sobre a vida dessa irmã do Rosário, nos leva a refletir acerca das possibilidades de mudança de condição social e jurídica no interior das sociedades escravistas.
Não foi possível precisar a data em que Josefa tornou-se agregada, mas o fato é que sua condição modificara-se no decorrer desses vinte anos de presença na irmandade. A partir do livro de “Termos de Mesa da Confraria dos Homens Pretos da Irmandade do Rozario”, sabemos que exercera o cargo de Juíza ainda na condição de escrava, dividindo suas tarefas com outros parceiros de cativeiro: o rei Mathias, escravo de Dona Anna Modesta e Maria, esta mulher do juiz Lourenço, ambos, propriedade da já mencionada Dona Margarida Florinda.
O elemento agregado constituiu-se como substrato de uma sociedade marcada pela concentração fundiária. Segundo Roberto Schwarz (2000, p. 15-16), latifundiários, escravos e “homens livres” foram classes produzidas com base no monopólio da terra. Estes últimos: “nem proprietários, nem proletários”, cujo “acesso à vida social e a seus bens” dependia diretamente dos favores dos primeiros. Em sua passagem pela província de São Paulo, durante estadia num rancho em Taubaté, Saint-Hilaire captou a presença desses agregados ao percorrer o Caminho da Piedade, cenário dos fatos aqui narrados:
Confirmou-se o que escrevi ontem sobre os habitantes da beira da estrada. São quase todos agregados que nada absolutamente possuem e cujos casebres, e ranchos, pertencem a proprietários vivendo a certa distância do caminho, para não serem incomodados pelos viajantes. Fazem construir ranchos e tabernas à margem da estrada e os alugam a pessoas pobres a quem dão milho e aguardente para que os venda aos transeuntes (1954, p. 118).
Eni de Mesquita Samara (1981), ao analisar a presença dos agregados em Itú entre os séculos XVIII e XIX, caracterizou este grupo como uma “camada flutuante e bastante complexa”, constituindo-se tanto por elementos bens situados socialmente, com atividades específicas (boticários, negociantes, cirurgiões, entre outros); como por homens livres e pobres que circulavam em busca de trabalho, abrigo e proteção, ou que esmolavam pelas ruas das vilas e beiras de estradas. De outra parte, Maria Helena Machado observou a difícil situação dos livres pobres num quadro comparativo entre Taubaté e Campinas, pontuando a existência de conflitos entre eles e os escravos, como consequência das intensas relações entre essas duas categorias sociais. Intercursos estabelecidos tanto no espaço urbano quanto na área rural, especialmente nas pequenas vendas que circundavam as fazendas e nas beiras de caminho, como testemunhou Saint-Hilaire. Espaços menos vigiados que favoreciam contatos mais livres e o desenvolvimento de um “inter-relacionamento íntimo”. No que tange aos libertos, ainda segundo Machado, no universo agrícola havia uma tendência de orbitarem a volta do homem branco e de suas propriedades, devido ao “leque de oportunidades profissionais mais reduzido”, vivenciando mesmo na condição de egressos da escravidão, situações estritamente escravistas, em que continuavam a partilhar com outros cativos as fainas agrícolas (1987, p. 41-44).
A mobilidade espacial das camadas mais pobres da população nas áreas rurais, no século XIX, também foi apontada Hebe Mattos (1995). A autora observou que forros, livres pobres e também escravos fugidos, circulavam pelas mais diversas regiões em busca de trabalho. O aumento contingencial de negros e mestiços libertos fazia com que a condição escrava não mais estivesse diretamente associada à cor da pele. Fazendeiros e sitiantes não hesitavam em contratar homens absolutamente desconhecidos para trabalhar por jornada. Segundo Mattos:
Mesmo em face da rigidez rural predominante nas áreas consideradas, os arraiais, vilas e pequenas cidades possibilitavam a reinserção social para os que possuíam algum capital para montar pequenos negócios ou dominavam ofícios especializados. (…) por outro lado, no circuito rural-rural, a mobilidade, associada ao assalariamento agrícola eventual, funcionava como uma ponte provisória até o estabelecimento de novos laços que permitissem reconstituir a situação anterior de lavrador independente (p. 47).
Na falta do inventário de seu antigo proprietário, não pudemos apurar de que forma ocorreu a transição de Josefa de escrava para agregada, mas essa mudança se encontra devidamente registrada nos livros de sua irmandade. O mais provável é que a mudança de condição social não lhe tenha permitido “viver sobre si”, mantendo-a atrelada a um livre pobre como ela. De escrava a agregada, talvez não tenha havido uma alteração substancial no cotidiano de Josefa, mas certamente essa nova condição lhe traria uma mobilidade maior no interior da vila e um status diferenciado perante os demais irmãos. A importância do lugar social de origem dos membros do Rosário de Taubaté está expressa em toda a sua documentação. Nos livros de registro de entradas e de termos de mesa, os irmãos são identificados como: “escravo de”; “escravo que foi de”, “agregado a”, “liberto”. A transitoriedade da condição escrava pode ser observada novamente através do registro da irmã Jeronima:
Entrada da Ir. Jeronima escrava do AlferesAmaro Antonio de Carvalho. Aos 27 de Dezembro de 1811, entra pa. Esta Irmandade Jeronima. escrava do Alferes Amaro com liça. de seo senhor obrigandose e sogeitandose as leiz da mesma Irmde. Do que se fes este asento, que asigna o juiz, E por ela não saber ler nem escrever assigna a seu rogo eu Manuel Pinto Barboza, escrivam da Irmde. O escrevi. Laurindo Justiniano, a rogo Manuel Pinto Barboza. (grifos nossos).
Esta irmã ingressou no Rosário de Taubaté no ano de 1811, pagou seus anuais regiamente durante onze anos e nunca exerceu cargos expressivos. Não obstante, uma pequena anotação lateral em seu registro na qual se lê: “hoje he liberta mulher de Francisco Ramos da Silva”, nos permite saber que nesse espaço de tempo Jeronima alcançara a liberdade. Fato este que, à semelhança do que ocorrera com Josefa, foi acompanhado de perto pela irmandade. Contudo, diferentemente de sua consorte, que migrara de uma condição de subalternidade para outra, Jeronima alcançara não apenas a condição de liberta, como também a de casada, o que lhe conferia o status legítimo de “mulher honesta”. O seu registro não permitiu identificar quando se tornara livre, no entanto, é possível pensarmos em sua trajetória a partir do inventário de seu antigo proprietário, o AlferesAmaro Antonio de Carvalho, um nome constante na documentação coligida.
Este oficial teve o seu inventário e partilha de bens efetivados pela viúva e por seus três filhos no ano de 1816. Constam no rol de seus bens, além de um pequeno roçado de milho, dois cavalos, um boi, alguns porcos e o sítio “de sua morada”, que se localizava:
Principiando no rumo do Capitão Domingos Ferreira da Silva acompanhando as capoeiras de Francisco Alvares dos Santos, voltando a sahir na Estrada que vai para a tapera do Reginaldo de chegando na volta do Piracangagua, para a dita Capoeira seguindo pelo Espigão do morro que de (ilegível) para a tapera do dito Reginaldo athe o rumo de Joam Gonsalves do Prado seguindo o dito rumo athé em encostar com Joaquim Gonsalves seguindo o rumo do fallecido João Correa do Prado athe o matto que foi finado, sendo aprocimado um Espigam que desangua para o (ilegível) sendo outra vês pelo mesmo Espigam, aprocima o Caminho do Paiol atravesando o caminho que vai para o mesmo Paiol passando dois paos pretos de Peroba aprocima o Espigam que desse para a capoeira do Janoario athe as tantas com o rumo do já dito capitão Domingos Ferreira da Silva. (grifos nossos).
A detalhada descrição do caminho que levava às terras do falecido, bem como a extrema preocupação em demarcar a sua exata localização, nos revelam uma propriedade distante da vila. Identificada através da passagem por capoeiras, espigões e taperas, certamente obrigaria o Alferes(que também era membro do Rosário) e seus escravos, a percorrerem uma longa distância a fim de participarem das atividades da irmandade. Logo abaixo, um mapa da vila de Taubaté e de suas cercanias rurais, elaborado por Félix Guisard Filho, nos auxilia na localização geográfica da Irmandade do Rosário e das áreas das quais alguns de seus membros se originavam, permitindo pensar o grau de circulação, sobretudo dos irmãos cativos.
As terras do alferes Amaro dividiam-se com as do falecido João do Prado Correa, que além de seu vizinho era, supostamente, um irmão do Rosário uma vez que sua filha Maria Josefa, exercera o cargo de Juíza de Promessa no ano de 1811.2 A partir do inventário de João do Prado3, é possível apurar que se tratava de um pequeno proprietário que ao morrer, deixara aos seus legatários, além de suas terras e de um sítio4, algumas dívidas e três escravos, todos devidamente vendidos para sanar as despesas com seu funeral e quitação de seus credores, à exceção do escravo Domingos de 56 anos, africano da Costa, avaliado por 50$000 réis. Do montante deixado por seu pai, Maria Josefa receberia a quantia de 72$093 réis. A ausência de um plantel significativo de escravos pode significar que João do Prado trabalhasse em suas terras lado a lado com seus escravos, quiçá de um ou outro agregado.
Retornando ao inventário de nosso amigo alferes Amaro, por ocasião da partilha de seus bens, vimos que falecera deixando um rol de 13 escravos, dos quais, além de Jeronima, encontramos como irmãos do Rosário: Luiz Antonio, irmão de mesa em 1806 e andador em 1809 e 1810; Francisco, juiz em 1808 e 1810; Lauriano, eleito juiz de Promessa em 1811, e Ignácio, aclamado como juiz em 1812.5 Através deste inventário pudemos verificar que a irmã Jeronima era mulata e que não fora alforriada em testamento por Amaro. Avaliada em cerca de 140$800 réis, ficaria com a viúva, assim como dois outros “escravos-irmãos” do Rosário: Francisco e Ignácio, avaliados em 102$400 e 153$600 réis, respectivamente. Entre os companheiros de irmandade, destacamos o destino de Lauriano e Luiz Antonio, herdados por um dos filhos de Amaro, João Paulo.
O alferes Amaro era o que podemos chamar de médio proprietário. Por ser este senhor um irmão do Rosário, podia muito bem, como “bom cristão” que fosse partilhar a devoção de seus cativos, liberando alguns deles para participarem das festividades e reuniões de mesa. O incentivo à participação de escravos nas irmandades pelos proprietários era bastante comum, assim como eram muito bem vistos, socialmente e pelos poderes eclesiásticos, aqueles que arcassem com os valores das anuidades, joias de ingresso ou cargos de prestígio. Com relação à mulata Jeronima, sabemos que não fora liberta antes de 1816, ano do falecimento de seu proprietário, provavelmente por ser jovem e produtiva (se utilizarmos como referencial a avaliação dos demais escravos), podemos então aventar outras hipóteses para a sua alforria.6 Certamente teria se dado entre os anos de 1817 e 1822, data última de pagamento de seus anuais. É bem provável que a venda das terras e do sítio tenham precipitado a viúva rumo à vila, onde poderia facilmente viver as expensas do trabalho a ganho de seus três escravos, estes sim o seu bem maior, doravante. Ali, em contato com a cidade e a partir de seus afazeres, Jeronima certamente teria conseguido condições de amealhar o suficiente para conquistar a sua alforria.
Diferentemente de Domingas, escrava de Lourenço Garcia, juíza de ramalhete em 1809 e rainha do Rosário em 1810. Este último cargo, Domingas assumiria como uma mulher liberta, uma vez que naquele ano fora identificada no livro de termos de mesa como: “escrava que foi do falecido Lourenço Garcia”.7 Podemos assim entender mesmo na ausência de testamento ou inventário de seu proprietário, que esta escrava fora libertada por ocasião de sua morte. Liberdade recente de uma condição distintiva no interior da confraria e que a marcaria indelevelmente, como “escrava que foi”.8 Neste ínterim, é mister destacar as possibilidades de perda da condição escrava por parte dessas mulheres. Sheila de Castro Farias (2000, p. 75), destacou uma maioria feminina entre os alforriados no Brasil, seja por seu preço inferior em relação ao do trabalhador braçal, ao seu protagonismo no pequeno comércio, ou ainda, tirando partido do grau de afetividade desenvolvido com seus proprietários.
Os destinos de Jeronima, Josefa e Domingas foram marcados por essa transição, cujos desdobramentos infelizmente não nos foi possível acompanhar, dada a ausência de fontes. Todavia, acreditamos que a condição de libertas proporcionou a essas mulheres, uma mobilidade social que, embora possa ter sido modesta, lhes trouxe a possibilidade de circular em diferentes espaços sociais. A exiguidade de documentos produzidos pela própria irmandade levou-nos a buscar outros mais que pudessem nos dar pistas de novas histórias. Dessa forma, através do cruzamento com inventários e testamentos, pudemos estabelecer contato com irmãos e irmãs escravizados e seus senhores, e ainda com outros personagens que figuravam em torno do Rosário dos Pretos de Taubaté, alguns dos quais, possivelmente, “brancos de boa consciência” que ocupavam como era de praxe entre as irmandades, os cargos de tesoureiro, escrivão ou procurador.
No caso do Rosário de Taubaté não podemos assegurar que esses cargos estivessem nas mãos de homens brancos, todavia, analisando o perfil dos demais irmãos, acreditamos que assim o fossem. O tenente coronel Cláudio Joze de Camargo e Manuel Pinto Barboza, tesoureiro e escrivão, respectivamente ocuparam esses cargos por cerca de seis anos, segundo a documentação compulsada. Embora não tenhamos encontrado seus inventários, sabemos que ao menos o tenente coronel tinha posses, pois emprestava a juros a pequenos proprietários da região, entre os quais figuravam alguns irmãos do Rosário e da Irmandade de São Benedito, fato observado a partir da consulta a outros inventários. O escrivão Manuel Barboza prestava serviços como redator de testamentos e avaliador de bens em processos de inventários. Quanto aos procuradores nesse período, José Moreira Gouveia e José Isidoro Gomes, não encontramos referências.
Manuel Gomes da Luz, um comerciante da vila, que vendia bebidas e mantimentos também se ocuparia do cargo de escrivão por um período de três anos consecutivos. Fora ele o encarregado de transcrever a reforma do compromisso da irmandade naquele ano de 1805.9 Com um comércio abastecido de mercadorias vindas do Rio de Janeiro, sua terra natal, Manuel possuía além da casa em que morava, na Rua Direita, outros seis imóveis, pequenas casas que provavelmente alugava, além de uma “chacra” sem produção. Tinha oito escravos, entre os quais dois encontravam-se “fugidos”: o casal de africanos “de nação” Clara e Antonio, este um “official de marceneiro”; e dois que estavam “doentios”: a crioula Benedita de 28 anos e o crioulo José “de trinta e tanttos anos, doentio dos peitos e dos pés”. Havia ainda entre os escravos de Manuel, o africano “de nação” João, “muito velho e quazi já sem valor”. Além do fugitivo Antonio, que exercia um “offício”, encontramos no plantel o escravo João, de 20 anos, também como “official de marceneiro”.
Sempre em busca de pistas sobre a vida dos irmãos do Rosário, identificamos Miguel Monjolo e seu homônimo, Miguel Congo, marido da juíza eleita Domingas, ambos, escravos do “falecido Sargento-mor”. O monjolo fora eleito para o cargo de andador por três anos consecutivos. Uma função de suma importância e responsabilidade, pois lhe era delegado o papel de circular pela cidade e arraiais, convocando os irmãos a participarem das reuniões e celebrações da irmandade. No entanto, em 1808, Miguel monjolo encaminhou pedido à mesa da irmandade para que fosse “dispensado” das funções de andador, alegando “morar longe desta villa”. Certamente atribulado pelas fainas agrícolas, teve seu pedido aceito pela mesa que deliberou por outro irmão para substituí-lo.10
A justificativa formal de Miguel perante a mesa denota a deferência em relação à confraria a qual pertencia e a organização do Rosário dos Pretos no processo de ocupação de seus cargos. Os andadores eram responsáveis diretos pela divulgação das atividades da irmandade. Mariza Soares apontou a sua importância ao mencionar o cerimonial em torno do falecimento dos irmãos: “cabia ao andador dar a notícia ao juiz e aos demais irmãos, indo como diz o próprio nome, de casa em casa, anunciando o acontecido”. Segundo a autora, “a ideia de um andador visitando cada irmão indica uma forte teia de relações” (2000, p. 176). O fato de Miguel morar distante da irmandade reforça a possibilidade de trânsito dos “escravos-irmãos” do Rosário entre o eito e a vila por conta de suas atividades confrariais, momento propício para a tessitura de sociabilidades e quem sabe para concretizarem fugas, como a do casal de africanos Clara e Antônio, propriedade do procurador da irmandade, Manuel Gomes da Luz. Quem sabe esses africanos não teriam sido também irmãos do Rosário dos Pretos?
Nos documentos produzidos pela irmandade, Miguel monjolo e Miguel congo foram os únicos irmãos que tiveram as suas “identidades africanas” reveladas. Todavia, os inventários de alguns proprietários, nos permitem mapear as suas origens étnicas e sociais, bem como localizar outros africanos entre eles. Inventários e testamentos são fontes primordiais para apreendermos os movimentos internos das camadas sociais compostas por escravos e libertos no Brasil, por mais limitados que sejam. Segundo Eduardo Paiva (2000, p. 31): “os testamentos são relatos individuais que, não raro, expressam modos de viver coletivos e informam sobre o comportamento, quando não de uma sociedade, pelo menos de grupos sociais”. A partir destes, tentaremos encontrar alguns irmãos pretos do Rosário circulando pelos caminhos da Piedade.
Do eito à vila: entre inventários e testamentos, encontramos alguns irmãos.
Dona Margarida Florinda de Jesus, como já mencionamos anteriormente, foi uma figura constante nos documentos levantados para “rastrear” os irmãos do Rosário de Taubaté. Durante a pesquisa nos livros de termos de mesa e de entradas, encontramos treze escravos de sua propriedade como membros da irmandade, alguns deles inclusive ocupando cargos importantes. São eles: 1) Furtuozo, capitão de mastro no ano de 1809; 2) Rosa, juíza de ramalhete em 1810; 3) Maria, mulher de Lourenço, rainha em 1811; 4) Lourenço, juiz em 1811; 5) Bernardo, irmão de mesa em 1810 e 1811; 6) Vicencia, irmã de mesa em 1810 e 1811; 7) Amahildes, matriculada em 1809, (pagou seus anuais até 1816); 8) Emerenciana, registrada em 1809; 9) Francisco, registrado em 1809; 10) Mathildes, filha de Furtuozo, matriculada em 1810; 11) Catherina, mulher de Furtuozo, matriculada em 1810; 12) Joaquim, que entrou em 1812 e foi mesário nos anos de 1815 e 1817 e juiz em 1816; e 13) Mathias que entrou para a irmandade em 1812.
Dona Margarida era viúva do Sargento-mor Eusébio José de Araújo e morava com seus escravos “no sítio matto dentro, estrada de marzagão, no lugar chamado agua quente ou cabarucanguera”. Localidade distante da vila, se nos atentarmos para o mapa da vila e de suas cercanias, o que não impedia, contudo, que alguns de seus escravos fossem os mais assíduos participantes da irmandade. Segundo o seu inventário11 Dona Margarida possuía um plantel de 47 escravos que trabalhavam em seu engenho de açúcar e na criação de animais12, entre os quais localizamos alguns de nossos confrades. Entre eles figurava uma família formada por mulatos:
Hum escravo mullato de nome Furtuozo, lavrador de machado de idade que pareçia ter cincoenta annos foi avalliado pela quantia de cento e vinte e oito mil reis com que se sahi.
Huma escrava mullata de nome Catherina mulher do escravo Furtuozo de idade que pareçia ter quarenta e um a quarenta e tres annos, foi avalliada pela quantia de cem mil reis com que se sahi.
Huma escrava mullata de nome Amahildes filha do dito escravo Furtuozo de idade que pareçia ter de vinte annos, custureira foi avalliada pela quantia de cento e noventa mil reis com que se sahi.
O mulato Furtuozo, lavrador, avaliado por um baixo valor, fora capitão de mastro da Irmandade no ano de 1809, período em que poucos cargos foram ocupados por escravos e também participou como mesário nos três anos seguintes. Sua mulher Catherina, e a filha Amahildes, aparecem matriculadas no ano 1810. O detalhe é que em seus registros de entrada não estão caracterizadas como mulatas, descrição que lhes é dada no inventário de dona Margarida. O mesmo ocorre no caso de Jeronima, que se encontrava nos registros apenas como escrava do alferes Amaro, e cuja leitura do inventário de seu falecido proprietário, revelou tratar-se também de uma mulata.
Outro irmão pertencente à mesma senhora foi Joaquim, um jovem crioulo de 27 anos que ingressou no Rosário em 1812 e, quatro anos mais tarde, exerceu o importante cargo de juiz e figurou como irmão de mesa em 1815 e 1817. Joaquim era casado com Catherina, escrava de Maria Antonia de Nazareth, filha e inventariante de dona Margarida Florinda de Jesus. No livro de termos de mesa, consta eleita como rainha para o ano de 1811: “a Ir. Maria mulher de Lourenço, escrava de D. Margarida Florinda”. Nesse mesmo ano o juiz da irmandade seria: “o Ir. Lourenço escravo de D. Margarida Florinda”13. A partir inventário de Margarida Florinda encontramos mais detalhes sobre esses “escravos-irmãos”:
Huma escrava da Costa por nome Maria de Idade que pareçia ter cincoenta annos foi avalliada pela quantia de trinta e cinco mil reis com que se sahi.
Hum escravo da Costa por nome Lourenço estatura alta de idade que pareçia ter sessenta annos foi avalliado pela quantia, cujo escravo he rendido, foi avalliado pela quantia de setenta mil reis com que se sahi.
Hum escravo de crioulo de nome Lourenço mestre barbeiro de idade que pareçia ter de sesenta a setenta annos, foi avalliado pela quantia de cincoenta e hum mil reis com que se sahi.
O fato de no inventário constarem dois escravos de nome Lourenço, nos dá a possibilidade de um casal africano “da Costa”; ou misto, no caso de Maria ter se unido ao crioulo Lourenço. A faixa etária do trio era compatível, estando todos na casa dos sessenta anos, pouco mais ou menos. Não conseguimos localizar outros irmãos do Rosário entre os bens semoventes de Dona Margarida, sendo provável que tenham sido vendidos ou doados em vida aos filhos da falecida. É possível observar ainda, que o seu plantel era composto em sua maioria por crioulos jovens.14
A proprietária não figurava como irmã do Rosário, mas pode-se dizer que era uma mulher extremamente religiosa. Entre os seus bens encontramos pelo menos três oratórios com imagens de Santo Antônio, Cristo Crucificado, Santa Ana, além de “móveis de Igreja”, como castiçais, toalhas de renda e opas. Pertencia à Ordem Terceira de São Francisco, a quem devia 24$000 réis, provavelmente por conta de seus anuais. Em “terras de sua morada” mantinha um altar portátil, provavelmente utilizado para celebrações particulares.
Apesar de sua aparente devoção, a falecida aparentemente não incentivava o casamento entre seus escravos, pois além dos casais já mencionados, encontramos somente o jovem par formado por Antônio, africano da Costa, e Francisca, uma crioulinha de 18 anos. Lembrando que um desses casais era formado por escravos que provavelmente não moravam juntos, caso do irmão do Rosário Joaquim e sua esposa Catherina, escrava da filha de Margarida. Por fim, encontramos João, escravo da Costa, casado com Cláudia, uma crioula “louca ou deliriada”, ambos com idade aproximada de sessenta anos. Sem menção a companheiros, encontramos Anna Maria, “nação da Costa”, mulher de 30 anos e seus três filhos crioulos: Benedicto, com 6 ou 7 anos; Romão, com 5 anos e Ignácio de 1 ano de idade. Anna, “de nação da Costa” e seu filho, o crioulo Luiz, “doentio”, com idade de 36 anos mais ou menos. Leandro, um mulato de 60 anos, pai dos “criollos”, João de 4 anos e Domingos de 6 ou 7 anos e a crioula Manuella, mãe da pequena Marianna de apenas 7 meses.
O grupo de cativos de dona Margarida Florinda mesclava escravos em plena idade produtiva com outros já perdidos para o trabalho na lide pela avançada idade, sobretudo os africanos. Segundo Armênio Rangel, a proprietária representava a segunda maior fortuna em escravos do município de Taubaté no ano de 1817. O autor analisou o perfil de repartição da riqueza do município no início do século XIX e verificou que a economia local girava em torno da criação de animais, especialmente de muares, com escassa produção açucareira, em sua maioria utilizada no fabrico de aguardente. Para o final do século anterior, Rangel apontou uma população escrava de cerca de 17,6% do total de habitantes do município e ainda uma porcentagem expressiva de agregados que se fixavam em terras alheias a partir de relações de dependência e subordinação (1998, p. 363).
Acerca da distribuição de terras, o autor destaca que, além da insignificância dos médios proprietários: “o perfil da repartição da terra do município de Taubaté caracterizava-se por uma distribuição fortemente assimétrica à direita, que revela uma elevadíssima concentração, com a presença de inúmeros pequenos proprietários ao lado de poucos grandes” (caso de Margarida Florinda de Jesus). Ainda segundo Rangel embora o município de Taubaté não apresentasse características de uma economia agroexportadora nas primeiras décadas do século XIX, mantinha padrões de repartição de riqueza compatíveis com uma elevada concentração de terras (Idem, 359-365). Tal era o perfil taubateano nas primeiras décadas do século XIX, período em que se encontramos as principais referências a respeito da Irmandade do Rosário dos Pretos de Taubaté. Doravante, portanto, utilizaremos os padrões de posse estabelecidos por Rangel para caracterizar os pequenos e médios proprietários encontrados ao longo do cruzamento de fontes realizado na busca pelos irmãos pretos do Rosário de Taubaté e daqueles com quem se relacionavam.
Um desses “médios” proprietários foi João Moreira dos Santos, falecido em 1825.15 Seu escravo João, matriculado como irmão do Rosário no ano de 1810, era crioulo e foi vendido para o pagamento das despesas com o funeral de seu proprietário. Moreira possuía uma morada de casas na vila, na “rua de trás da matriz”, no entanto, morava em seu sítio no bairro do Taboão, onde criava animais e plantava feijão e milho, pequeníssimas plantações de um e dois alqueires respectivamente. Possuía onze escravos, entre os quais o confrade João, num plantel bastante jovem e basicamente crioulo, excetuando o casal “de nação” Josefa e Francisco, já velhos. Produtivos, esses escravos deveriam trabalhar no eito na produção de gêneros de subsistência que seriam vendidos na cidade aos comerciantes de armazéns, o que certamente favoreceria as idas do escravo à irmandade. Como todo homem daqueles tempos, o proprietário do irmão João deixou imagens do Cristo Crucificado, Nossa Senhora da Conceição, das Dores, São Francisco e São Joaquim. Pediu em testamento “em nome de Deos, pela salvação de sua alma”, para que fossem rezadas oito missas de capela por sua alma e seu corpo enterrado com o hábito de São Francisco no cemitério da mesma ordem.
De outra parte, entre os pequenos proprietários de Taubaté encontramos o alferes Antonio José Pinto de Souza,16 proprietário da irmã Isidora, matriculada em 1810. Ao falecer, em 1830, deixou dois escravos: o africano “de nação” João de 40 anos, oficial de carpinteiro e sua esposa Marcelina, uma crioula de 30 anos. Entre seus bens, encontramos alguns bois e diversas ferramentas de carpintaria, além de um pequeno estoque de “ripas de madeira”. Certamente viveria da produção de seu escravo e com ele trabalharia lado a lado, servindo aos vizinhos mais prósperos, pois não possuía plantações em seu pequeno sítio, situado na área rural do município, muito próximo inclusive das terras de dona Margarida Florinda. Quanto a Isidora, infelizmente não encontramos nenhuma menção a seu respeito no inventário deste pequeníssimo proprietário.
Em se tratando dos proprietários das cercanias rurais de Taubaté, podemos afirmar que as relações de proximidade entre eles penetravam o consistório do Rosário dos Pretos. É o que podemos o observar retomando um trecho do inventário de Margarida Florinda:
Declarou mais haver sitio e terras no lugar denominado Matto dentro rio asima termo da ditta Villa de Taubathe que parte do lado do nascente com terras de Francisco Antonio dos Santos principiando do Ribeirão chamado Registo, vai partindo com terras de Antonio Barboza athe em testas com terra do ditto Capitam Gomes e da parte poente principiando no mesmo Ribeirão do Registo partem com terras de Francisco Ramos seguindo rumo asima athe chegar ao sitio do fallecido coitinho e no mesmo rumo athe as terras de Salvador da Cunha partindo tão bem com terras do Capitão Domingos Ferreira da Silva athe em testas com terras do ditto capitam Franscisco Gomes com as braças constantes da escriptura que a Inventariante apresentou. (...) Com três lanços17 de casas novas e três lanços velhas, as novas forradas de Taboa pro sima com suas competentes portas e com seu oratório e Altar portátil. (grifos nossos).
As terras da grande proprietária faziam divisa com as de um irmão do Rosário, Antonio Barbosa, que serviu à mesa no ano de 1807 e vivia da criação de animais em seu pequenino sítio.18 Este irmão possuía uma escrava mulata de nome Ana e mais seus dois filhos “crioulinhos”, além de uma casa na vila, situada à rua das Tropas, pequena propriedade de um lanço. O capitão Domingos Ferreira da Silva, que matriculou a sua escrava Tereza como irmã do Rosário no ano de 1810 e cujo inventário não conseguimos localizar, também dividia terreno com Florinda. Por fim, o capitão Gomes,19 ele próprio um irmão do Rosário desde 1813, que matriculou um de seus escravos, Benedito, no ano seguinte. Falecido em 1817, em seu inventário constam 14 escravos, sendo que Benedito não se encontra relacionado entre eles. Por ocasião de seu inventário a viúva, atestando a proximidade entre esses senhores, reclamaria da cobrança de 152$660 réis feita pela vizinha, Dona Margarida, alegando já haver quitado a metade dessa quantia.
Além de vizinhos, parentes de dona Margarida Florinda transitavam pelo Rosário: sua filha Gertrudes Florinda de Jesus foi juíza em 1807, compartilhando o importante cargo com o escravo Domingos, juiz eleito naquele ano. Também o seu genro, Luiz Vieira, casado com Ignes Maria, matriculou a sua escrava Gertrudes em 1812, a qual assumiria a função de mesária três anos depois. Vieira era proprietário de 28 escravos e possuía um pequeno engenho e uma roça bastante diversificada, cultivando milho, arroz, café e mandioca, segundo seu inventário datado de 1844. Não encontramos Gertrudes no rol dos seus bens semoventes.20
Ainda relacionados à grande proprietária, encontramos José Antonio Nogueira,21 que vivia do comércio de fazendas e era casado com uma de suas filhas, Francisca Florinda de Jesus. Este comerciante possuía 13 escravos entre os quais figuravam Maria e Francisco como confrades do Rosário. A africana “da costa” Maria, de 50 anos, que servira como mesária em 1809, encontrava-se doente “com lombos e tornozelos inchados”, por ocasião do inventário de Nogueira, que coincidentemente falecera no mesmo ano em que a sogra. Francisco, um mulato de 57 anos, ingressou na Irmandade em 1812 e atuou como mesário nos anos de 1815, 1818, 1823 e 1827.
A partir da teia de relações construídas em torno de dona Margarida Florinda, que nos leva diretamente à Irmandade do Rosário dos Pretos de Taubaté, podemos confirmar que gente de todas as qualidades circulava no interior daquela confraria. Escravos, senhores (pequenos, médios e grandes proprietários), agregados, libertos e livres pobres transitavam das zonas rurais para a vila a fim de cumprirem com suas obrigações religiosas.
Entre os pequenos proprietários e livres pobres que eram irmãos do Rosário, encontramos casos com o de Claudiano Martins da Mota, um carpinteiro que ingressou em 1815 e ao falecer onze anos depois, deixara apenas algumas ferramentas e uma casa simples na Rua do Tanque,22 e do irmão Antonio José Barbosa,23 que compusera a mesa da Irmandade em 1808, e ao falecer em 1827, deixara um pequeno sítio onde criava porcos, sem plantação alguma, e a sua “casa de morada” à rua das Tropas, onde vivia com a esposa e mais a escrava mulata Ana, que tinha dois filhos. Seus bens foram vendidos e repartidos entre a viúva e os oito filhos.
Também Francisco de Camargo Machado,24 que ingressou na Irmandade em 1814 e morava “na rua detraz da Matriz”, em casa de “paredes taipa de pilão, cobertas de telha”. Machado criava porcos em um pequeno sítio onde mantinha um roçadinho de milho e possuía dois escravos: a mulata Maria e o Benguela Francisco, de 40 anos. Como morasse na vila, é provável que os cuidados com a plantação na roça ficassem ao encargo de parentes ou agregados e que seus escravos lhe auferissem renda vivendo a ganho na vila. Deixou testamento em 1819, no qual pedia para ser enterrado com a mortalha da Ordem de São Francisco, da qual era “indigno irmão”, e dedicou uma “capella de missas a Senhora do Rosário”.
E, finalmente, a irmã Ignes Angélica dos Anjos,25 matriculada em 1811. “Proprietária de dois escravos: Mariana “de nação Benguella”, sobre a qual fizera questão de registrar: “foi comprada com o dinheiro de meo trabalho já depois de viúva” e o mulatinho Benedito de 07 anos, órfão doado a ela por um de seus irmãos.26 Ignes morava na rua da Cadeia e não constava que tivesse terras. Não foi possível identificar o ofício que lhe possibilitara a compra de Mariana. Como vivessem juntas, provavelmente a escrava exercesse pelas ruas da vila algum trabalho que sustentasse a si e à proprietária, além de servir-lhe de companhia, pois Ignes já tinha filhos crescidos e fora viúva por duas vezes. Seu inventário de 1826, traz um testamento com ordens expressas para que, assim como Francisco Machado, fosse enterrada junto ao cemitério da Ordem de São Francisco.
Certamente que a vida desses pequenos proprietários diferia muito pouco daquela que levavam seus escravos. Irmanados por uma existência modesta e pela devoção ao Rosário, circulariam pelas cercanias a venderem a sua pequena produção, oferecerem seus serviços e cumprirem com suas obrigações religiosas. Todavia, apesar de pertencerem ao Rosário dos Pretos de Taubaté, Ignes e Francisco fizeram questão de serem sepultados em outro cemitério. Conforme destacado por Reis (1991), o lugar de ser enterrado assumia grande importância no contexto social brasileiro. Neste caso especificamente, a escolha de Ignes e Francisco os colocaria em espaços sociais diferenciados, desvinculando ao menos na morte, esses modestos senhores da figura de seus escravos, por muito que convivessem e que fossem semelhantes os seus modos de vida.
Além de possuírem em comum a propriedade de escravos de origem “Benguela” (Mariana e Francisco, cuja origem comum poderia muito bem suscitar amizades), o fato de se haverem matriculado no Rosário em período próximo, indica que Ignes e Francisco eram no mínimo conhecidos. Uma proximidade que fatalmente se estenderia a estes poucos escravos, que se encontrariam ao circular a mando de seus senhores e, por que não, também ao frequentarem o Rosário dos Pretos, uma vez que seus proprietários assim o faziam. Ainda no campo das afinidades entre Ignes e Francisco, ambos moravam no centro da vila de Taubaté, que naqueles tempos ainda aguardava calma e modestamente, a abastança e riqueza que lhe traria o café, o que proporcionaria infinitas possibilidades de se encontrarem.
Segundo Nice Lecocq Müller (1965, p. 92): “nos primeiros anos do século XIX as condições de vida de Taubaté não diferiam muito das do setecentismo. Talvez fossem um pouco piores, devido ao esgotamento das jazidas auríferas em Minas Gerais e à perda da função abastecedora da região de mineração que já se tornara autossuficiente”. Dada a precariedade da vila de Taubaté naquele momento, membros do Rosário que identificamos a partir da documentação como livres pobres, acorriam das cercanias rurais em direção ao centro, seja em busca de melhores condições de vida ou para comercializar sua pequena produção. Alguns deles se encontravam em pior situação do que seus congêneres citadinos, uma vez que não possuíam sequer um escravo.
Pedro Alves Barbosa e Ignacia Maria de Jesus ilustram bem essa presença.27 O primeiro era um homem simples e analfabeto que entrou para a Irmandade no ano de 1809. Lavrador de enxada, não tinha escravos e era proprietário de um sítio onde mantinha roçados de milho e um mandiocal. Foi tudo o que deixou para seus dez filhos, além de três cabeças de porcos, suficientes apenas para consumo próprio e mais algumas imagens de santos, entre elas a de Nossa Senhora do Rosário. Ignacia morreu em 1812, dois anos depois de matricular-se como irmã, quem sabe para garantir um bom enterro e acompanhamento em seu funeral. De melhor sorte que seu confrade Pedro Barbosa, morava em sítio na região do Mato Dentro, (como a grande proprietária Margarida Florinda de Jesus), e possuía uma morada de casas na vila à Rua Nova do Tanque, às quais provavelmente alugava. No sítio onde residia mantinha um pequeno roçado e um boi velho e tinha consigo uma única escrava, a “rapariga Joana” de oito anos, que era “doente dos pés”.
Seus poucos bens foram avaliados na ocasião do inventário pelo escrivão da irmandade, Manuel Pinto Barboza. Entre eles estavam um oratório e alguns pingentes de ouro. Ignacia também deixava como herança aos seus herdeiros, uma dívida de 10$800 réis com o tenente coronel Claudio José de Camargo, o tesoureiro do Rosário. Na ocasião da elaboração de seu inventário, surgiu entre seus herdeiros a “engeitada” Joanna Francisca do Espírito Santo, cujo marido entrou com um pedido solicitando os seus direitos sobre o modesto espólio. Joanna era filha de “pais incógnitos” e fora exposta “em casa da falecida Ignacia Maria de Jesus”. Segundo a enjeitada, a falecida Ignacia a criara como filha: “educando-a, alimentando-a e vestindo-a”. Em seu pedido, Joanna assegurava que a “mãe”, “tratando-a em filha”, prometera recompensá-la quando morresse, por seu amor e pelos “serviços prestados em casa e na lavoura”.
Para saldar as despesas com seu funeral e a dívida com o tesoureiro da Irmandade do Rosário, Ignacia deixou para ser vendida a escrava Joana e mais “um taxinho de cobre”. Pediu para ser enterrada na Igreja Matriz e que seu cortejo fosse acompanhado pelo Vigário e demais sacerdotes. A falecida deixou para a “engeitada” Joanna a morada de casas à Rua Nova do Tanque, “sem brassas de terras” de seu sítio, uma caixa grande, um par de brincos de ouro, uma imagem do Senhor crucificado e “uma saya e baeta de igreja”. Arrolou entre seus bens umas poucas roupas de algodão que doou à “pobre Francisca” e ainda uma imagem de São João, que deixou para uma comadre. As disposições do testamento de Ignacia, não foram cumpridas, entretanto. Seus bens, incluindo a pequena escrava Joana, seriam vendidos e minuciosamente divididos e partilhados entre seus dois filhos legítimos e outros parentes que moravam em torno do sítio, atos consumados com o auxílio do prestativo escrivão da Irmandade do Rosário que dispunha seus serviços junto à família. Joanna, a “engeitada”, não obstante os protestos do marido que lhe representava, ficaria apenas com uma pequena quantia do que já era pouco...
Por fim, o caso de dois membros do Rosário, um senhor e sua escrava, que além de partilharem um espaço comum, foram parceiros em cargos de comando: Igino Alves Pereira e Benedicta. Homem analfabeto que não deixou testamento ou inventário, Igino matriculou-se como irmão no ano de 1809 e exerceu a função de mesário em duas ocasiões, também foi eleito rei no ano de 1814, pagando a quantia de 4$000 réis. Sua escrava Benedicta entra para o Rosário dos Pretos no mesmo ano. Benedicta pagou suas anuidades regiamente até o ano de 1812, no qual exerceu o cargo de Juíza de Ramalhete, desembolsando para tanto a quantia de 1$000 réis, mesmo ano em que seu proprietário sentara-se à mesa da Irmandade. A ausência de pagamentos subsequentes talvez tenha ocorrido por conta do falecimento da irmã ou, por que não, devido ao seu esforço em pagar o valor necessário para assumir a anterior posição de destaque. Pode até ser que Igino, que manteve a regularidade nos pagamentos até meados de 1815, tenha contribuído com alguma quantia para isso, porém, o mais provável é que Benedicta tivesse de manter-se como irmã às suas expensas, fato muito comum entre os escravos que se vinculavam a irmandades (SOUZA, p. 201).
Todavia, compartilharam espaços e assumiram ambos, postos de relevo na hierarquia social do Rosário dos Pretos de Taubaté. Igino e Benedicta realçam as estreitas relações entre senhores e escravos que permearam a sociedade brasileira. De modo geral, a presença de pretos e pardos, escravos ou libertos, circulando pelas ruas das vilas e cidades, foi propiciada entre outros fatores, pela frequência em suas confrarias. Na elaboração de suas festas e na coleta de esmolas, garantiam um livre circular, ampliando as suas relações e estabelecendo diálogos com a sociedade mais ampla. Nesse sentido, no decorrer do século XIX seria fundamental o papel das irmandades vale-paraibanas ao auxiliar os irmãos em suas diversas situações de vulnerabilidade: enfermidades, morte, libertação de irmãos presos, compra de alforrias, entre outras (RIBEIRO, 2017). No limite das fontes reunidas para contar uma parte da secular história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Taubaté, não foi possível apurar as suas ações. Mas é certo que a produção daqueles pequenos proprietários taubateanos, que a compunham, seria conduzida ao comércio da vila por seus poucos escravos, e, no trajeto às vezes longo, laços seriam criados e desfeitos dependendo do grau de afinidade entre eles. Na criação de alguns desses “laços”, alforrias como as de Jeronima e Domingas teriam sido possíveis. O Rosário dos Pretos de Taubaté reproduziu e complementou, dessa forma, dinâmicas de interação social que colocaram senhores e escravos em proximidade, reflexo da convivência diária no âmbito das roças e sítios. A perspectiva que ora se apresenta neste artigo, é entender as irmandades constituídas por escravizados, para além de seu universo devocional, como um espaço de “tessitura de sociabilidades” (SALLES, 2017). Sociabilidades possíveis, que certamente ajudaram a amenizar a dura vida do cativeiro.

REFERÊNCIAS
ABREU, Maria Morgado de. História de Taubaté através de textos. Taubaté: Prefeitura Municipal de Taubaté, 1996, p. 181 [Col. Taubateana, nº 17]).
ALVES, Maurício Martins. Caminhos da pobreza: a manutenção da diferença em Taubaté (1680-1729). Taubaté: Prefeitura Municipal de Taubaté , 1998.
BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas irmandades do rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais - séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
Diccionario da Língua Portugueza Antonio de Moraes Silva. Tomo I. Lisboa: Typographia de Joaquim Germano de Souza, 1877.
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
FARIA, Sheila de Castro. “Mulheres forras - riqueza estigma social”. Tempo, Rio de Janeiro, n. 9, Julho 2000.
GUISARD FILHO, Félix. Índice de Inventários e Testamentos: achegas à história de Taubaté. Coleção Biblioteca Taubateana de Cultura, volume IV. São Paulo: Athena Editora, 1939.
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Evolução e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2006.
LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert. O escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp , 2010.
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em Bananal (1801-1829). São Paulo: Fapesp/Annablume, 1999.
MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo: ordenado pelas leis provinciaes de 11 de Abril de 1836, e 10 de Março de 1837. São Paulo: Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923.
MÜLLER, Nice Lecocq. “Estudos de Geografia urbana”. Revista Brasileira de Geografia, ano xxvii, nº 1, jan.-mar. 1965.
NETO, Luis Camilo de Oliveira. “Diário da Jornada que fez o Exmo. Senhor Dom Pedro o Rio de Janeiro, athé a Cide. de São Paulo e desta athé as Minas, Anno de 1717”. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, vol. 3, 1937-1945.
ORTIZ, José Bernardo. São Francisco das Chagas de Taubaté. Livro 2º: Taubaté Colonial. Taubaté: Prefeitura Municipal de Taubaté , 1988 [Coleção Taubateana, nº 10.
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2000.
RANGEL, Armênio de Souza. “Dilemas da historiografia paulista: a repartição da riqueza no município de Taubaté no início do século XIX”. Estudos Econômicos, São Paulo, vol. 28, nº 2, abr.-jun. 1998.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RIBEIRO, Fábia Barbosa. Caminho da Piedade, caminhos de devoção: as irmandades de pretos no Vale do Paraíba Paulista - século XIX. São Paulo: Alameda Editorial/FAPESP, 2017.
SAINT-HILAIRE, Augusto de. Segunda viagem a São Paulo e quadro histórico da Província de São Paulo. São Paulo: Biblioteca Histórica Paulista, 1954.
MUAZE, Mariana e SALLES, Ricardo. Família escrava em impérios agrários: o caso da fazenda Guaribú. Acervo, Rio de janeiro, v. 30, n. 1, p. 34-51, jan./jun. 2017.
SAMARA, Eni de Mesquita. “Os agregados: uma tipologia ao fim do período colonial (1780-1830)”. Estudos Econômicos, 11 {3}: 159-168, dez. 1981.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
SOBRINHO, Alves Motta. A civilização do café (1820-1920). 3ª ed. São Paulo: Brasiliense , 1978.
SOTO, María Cristina Martínez. Pobreza e conflito: Taubaté - 1860-1935. São Paulo: Annablume : 2001.
SPIX E MARTIUS. Viagem pelo Brasil - 1817-1820. São Paulo: Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1984.
TAUNAY, Affonso de E. História do café no Brasil. Vol. 4. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1939.
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
NOTAS
1A presente análise é fragmento de estudos empreendidos em meu doutorado, realizado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). A pesquisa contou com apoio do CNPQ e se encontra publicada pela Alameda Editorial/FAPESP. Ver: RIBEIRO, 2017.
2 Era costume que as famílias se filiassem às Irmandades a partir da entrada do patriarca. Dessa forma, os confrades batizavam seus filhos assim que nasciam e geralmente os matriculavam nas ordens religiosas às quais pertencessem.
3 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário e partilha de bens de João do Prado Correa - 1809. Este inventário se encontra em estado precário de conservação, pudemos apurar que além das terras, o falecido deixara três escravos e algumas dívidas.
4 Esta propriedade contava com 500 braças de terras, uma proporção razoável dada a ausência de outros bens deixados pelo falecido. Essas quinhentas braças de terras de João Prado equivaleriam a um terreno de cerca de mil metros (ou um quilômetro), se considerarmos que uma braça de terra equivale a dois metros e vinte (2,2m) mais ou menos. Conforme verbete “braça” em: Diccionario da Língua Portugueza Antonio de Moraes Silva. Tomo I. Lisboa: Typographia de Joaquim Germano de Souza, 1877.
5 DMPAH - Livro de “Termos de Mesa” da Confraria dos Homens Pretos da Irmandade do Rozario - 1805 - doc. 4B - Caixa 119.
6 Para essa assertiva, nos pautamos no valor mais alto atribuído aos escravos Sebastião e Ignácio no momento de sua avaliação: 153$600 réis.
7 DMPAH - Livro de “Termos de Mesa” da Confraria dos Homens Pretos da Irmandade do Rozario - 1805 - doc. 4B - Caixa 119.
8 Em algumas irmandades, conforme apontado pela pesquisa da qual se origina este artigo, havia distinção entres irmãos escravos e libertos. Ver: RIBEIRO, 2017.
9 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Manuel Gomes da Luz - 1835.
10 DMPAH - Livro de “Termos de Mesa” da Confraria dos Homens Pretos da Irmandade do Rozario - 1805 - doc. 4B - Caixa 119.
11 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Margarida Florinda de Jesus - 1820.
12 Esse número foi apontado por Armênio Rangel (1998, p. 63) e confere com os dados constantes no inventário da falecida Margarida Florinda de Jesus.
13 DMPAH - Livro de “Termos de Mesa” da Confraria dos Homens Pretos da Irmandade do Rozario - 1805 - doc. 4B - Caixa 119.
14 Contabilizamos no plantel de Margarida Florinda de Jesus: 24 crioulos, 13 mulatos e 10 africanos.
15 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de João Moreira dos Santos - 1825.
16 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Antonio José Pinto de Souza - 1830.
17O lanço equivale a uma casa com uma porta e uma janela.
18 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Antonio José Barbosa - 1827.
19 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário do Capitão José Gomes de Araújo - 1817.
20 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Luiz Vieira da Silva - 1844. O inventário de Margarida revelou que Vieira lhe devia 602$511 réis.
21 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário José Antonio Nogueira - 1820.
22 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Claudiano Martins da Mota. - 1826.
23 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Antonio José Barbosa - 1827.
24 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Francisco de Camargo Machado. - 1819.
25 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventário de Ignes Angélica dos Anjos - 1826.
26 Consta do inventário que Ignes trocara uma escrava crioula de nome Tereza por um escravo chamado Pedro, o qual havia dado em dote a uma filha, mesmo na pobreza mantinha-se a tradição do casamento.
27 DMPAH - Acervo Felix Guisard Filho - Cartório do 2º Ofício. Inventários de Pedro Alves Barbosa - 1849 e de Ignacia Maria de Jesus - 1812.
Recebido: 19 de Março de 2018; Aceito: 05 de Julho de 2018
E-mail: fabiaribeiro@unilab.edu.br

Fabia Barbosa RIBEIRO.
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo.
Professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Campus dos Malês.
Av. Juvenal Eugênio Queiroz, s/n, Baixa Fria, São Francisco do Conde, 43900-000 Bahia, Brasil.


04. Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil

Igreja de Nossa Senhora dos Pretos de Taubaté – Taubaté – SP A Irmandade do Rosário dos Pretos de Taubaté teria começado num pequeno altar na Igreja Matriz. No início do século XVIII, a Igreja foi construída e existe até hoje na Rua do Rosário, a pouca distância da catedral de São Francisco de Assis. A documentação – livros dos termos de mesa e livro de entrada de irmãos, principalmente do século XIX, encontra-se depositada na Divisão de Museus e Patrimônio Histórico de Taubaté. As atas da eleição que se fez no ano de 1805/1806 indicam a presença de africanos, entre eles Miguel Monjolo e Miguel Congo. No Vale do Paraíba de São Paulo ainda foram construídos outros templos ligados aos escravos e africanos recémchegados, como a Capela do Rosário de Bananal e a Igreja do Rosário de Guaratinguetá, hoje, entretanto, destruídas.

Referência: RIBEIRO, Fábia Barbosa. Caminho da piedade, caminhos de devoção: as irmandades de pretos no Vale do Paraíba paulista – século XIX.
Tese de Doutorado. História Social, USP, 2010.



05. A ORIGEM BRANCA DA DEVOÇÃO NEGRA DO ROSÁRIO

Paulo Henrique Silva Pacheco

Resumo: O artigo consiste no diálogo entre vários autores que investiram seus estudos no processo histórico da difusão do culto a Nossa Senhora do Rosário, dentre eles: Julita Scarano, Caio César Boschi, Mariza de Carvalho Soares, Antonia Aparecida Quintão e Juliana Beatriz Almeida de Souza. É uma explanação referendada nas origens das primeiras associações religiosas leigas, constituídas na Europa a partir do século XIII, difundindo-se entre os negros três séculos após a sua criação, levando seus devotos brancos a abandonarem quase que completamente esse culto. Essa devoção chegou ao Brasil pelos jesuítas e possivelmente com alguns confrades saídos de Portugal, estruturando-se como uma invocação negra, viva no catolicismo barroco brasileiro.

Palavras-chave: Confrarias religiosas (Irmandade do Rosário); História do Brasil; Negros; Religião.

As associações religiosas constituíram-se a partir do século XIII como verdadeiros grupos que, além de promoverem cultos ao santo de devoção, prestavam assistência material a seus associados. Formadas, sobretudo, por leigos a preocupação principal dessas agremiações era a “propagação da doutrina” e a “filantropia social”, ou seja, a caridade. A autora Marina de Mello e Souza, além de afirmar que “essas associações eram meios do grupo instituir formas de solidariedade, principalmente frente à morte e à doença”, as considera como uma forma de integração e aceitação na sociedade. Mariza de Carvalho Soares examina a formação desses grupos religiosos como uma forma de reação contra a exclusão que estavam submetidos no espaço urbano, considerando que
os indivíduos procedentes de determinada localidade passam a construir não apenas grupos, no sentido demográfico, mas grupos sociais compostos por integrantes que se reconhecem enquanto tais e interagem em várias esferas da vida urbana, criando formas de sociabilidade que – com base numa procedência comum – lhes possibilitam compartilhar diversas modalidades de organização, entre elas as irmandades

Para um maior esclarecimento sobre as razões que levaram a formação de associações religiosas leigas, Caio César Boschi formulou uma hipótese baseando-se na necessidade da população medievalista. Segundo o autor a falta de segurança que cercava a vida desses homens foi o que propiciou a constituição de grupos, que unidos pelas suas agruras vividas encontraram na figura dos santos um conforto para os seus dissabores.

A Baixa Idade Média presenciou o desabrochar dessas comunidades fraternais. Nascidas sob a inspiração e a égide do poder espiritual, logo se pautaram por um sentido nitidamente laico. Assumiram, assim, papel suplementar ao da Igreja com finalidades bastante dinâmicas acompanhando o processo histórico.

O propósito espiritual e o auxílio mútuo faziam desses grupos um verdadeiro centro de vida social, influenciado pelas Santas Casas de Misericórdia, que serviam de modelo a essas agremiações, promovendo o benefício material dos seus membros e também representando uma associação restritiva que tentou desenvolver a vida religiosa dos seus associados, cuidando de doentes desassistidos, de defuntos carentes, de recursos, de presos e de condenados. A religiosidade que se construiu no interior dessas irmandades era definida por um grupo minoritário de devotos que constituíram um corpo dirigente, conhecido como Mesa Administrativa. Cabia a esses membros, escolhidos por uma eleição anual, gerir todos os negócios e decidir sobre todas as questões pertencentes à devoção, incluindo as festas dedicadas ao santo, as procissões e os cortejos fúnebres, momentos em que as irmandades faziam-se presentes diante da sociedade. Para uma abordagem mais completa sobre o assunto deve-se ressaltar a particularidade religiosa de cada grupo, apesar da similaridade funcional o universo físico estruturado em torno do drama da alma do homem medieval e do santo escolhido para aliviar as suas mazelas resultaram em distinções quanto aos símbolos e aos meios de se relacionarem com o sagrado.

1. A construção simbólica do sagrado
Para compreender o processo que fez do rosário um instrumento sagrado é preciso ressaltar a mentalidade religiosa do homem medieval, apresentando o universo no qual esses devotos estavam inseridos. A Idade Média foi uma época que favoreceu a permanência de símbolos, de modo que o sagrado fosse dessa forma representado e sentido no universo material.

Nada acontecia que não o fosse pelo poder do sagrado, e todos sabiam que as coisas do tempo estão iluminadas pelo esplendor e pelo terror da eternidade. (...) Anjos descem a terra ligados ao mundo, enquanto Deus preside a todas as coisas do topo de sua altura sublime. E havia possessões, milagres, encontros com o diabo e as coisa boas aconteciam porque Deus protegia aqueles que o temiam, e as desgraças e pestes eram por Ele enviadas como castigos para o pecado e a descrença.
 Hábitos e crenças que surgiram no período medieval ainda hoje conseguem se manter ativos na religiosidade popular, como o uso do rosário. Uma explicação puramente religiosa foi encontrada pela autora de obras litúrgicas Tarcila Tommasi para justificar a origem desse objeto. Em seu artigo Tommasi, através de uma tradição católica, escreve que nos antigos mosteiros católicos havia o costume de rezar os 150 salmos bíblicos em diferentes horas do dia, porém alguns monges, por serem analfabetos, substituíram tais salmos por 150 ave-marias, dividindo-as em três grupos de cinquenta. Contavam as ave-marias por meio de nós feitos em cordões como uma “coroa de rosas” oferecidas à Nossa Senhora. No século XIII, a Igreja passou por momentos difíceis, especialmente na luta contra as heresias. São Domingos, da ordem dos pregadores, sofreu muito para conciliar o ataque aos heréticos com o cristianismo. Nessa ocasião, Nossa Senhora lhe apareceu na Igreja de Notre Dame de la Dreche, para consolá-lo dessa tristeza, dando-lhe a oração do rosário como antídoto que o povo deveria usar contra a heresia . O rosário, então atribuído à Maria, mãe de Jesus, estava relacionado as flores, não apenas pela aparência do objeto mais pelo símbolo de beleza e pelas propriedades curativas que a rosa proporcionava, fazendo então uma relação com a palavra do latim medieval rosarium, que significa jardim de rosas8 . Pautada no conhecimento científico, outra hipótese pode ser considerada, Marina Warner, em seu estudo intitulado Tú Sola entre lãs mujeres. El Mito y culto de la Virgen Maria, afirma que não se pode identificar o local exato da introdução do rosário na cristandade ocidental, apesar de considerar que o seu início se deu no oriente, na Índia brahmânica, estendendo-se para o budismo e ao islã, assemelhando-se com o colar de contas que os homens da Grécia, Ásia e do Norte da África, usavam como um calmante para os nervos, adquirindo um caráter totalmente laico. Ao contrário de ocidente, que se converteu em um hábito exclusivamente religioso. Não cabe aqui formular uma terceira hipótese explicativa para a origem do rosário, mas identificar os elementos que legitimaram o caráter sagrado desse objeto junto ao processo histórico no qual esteve inserido. Tanto na tradição remontada por Tarcila Tommasi quanto a hipótese de Marina Warner são apontados certos aspectos que devem ser considerados, como a crise que a Igreja começou a passar a partir do século XII. Nesse momento alguns movimentos criticavam a estrutura hierárquica da Igreja, rebatendo os seus fundamentos, foi o caso dos albigenses, grupo considerado herege que habitou o sul da França, Albi. O papa Inocêncio III decretou uma cruzada contra os inimigos da cristandade, sendo nomeado chefe da mesma Simão de Monfort, amigo de Domingos de Gusmão, que desenvolveu uma intensa atividade para combater as heresias e reconverter a região. Enquanto a cruzada enfrentava o exército albigense Domingos lançava-se a rezar aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, momento em que a Santa lhe apareceu e ensinou-lhe um método de oração. A vitória que se teve sobre os albigenses foi então atribuída à Maria com o seu rosário e ainda no mesmo ano de 1213 Simão de Monfort construiu uma capela na Igreja de Santiago de Muret dedicada à Virgem. A extensão do uso do rosário, como afirma Juliana Beatriz Almeida de Souza, coube também aos cruzados que tomara o costume dos muçulmanos, de usarem o colar no pescoço. Porém, considerando a Reforma Católica como uma ação propulsora para a devoção à Maria a autora destaca a obra do dominicano Alano de Rupe, que “despertou a crença nos poderes do rosário como meio de obter graças e proteção da Virgem Maria”, inspirando outras obras e missionários, “em especial os dominicanos”, por toda a Europa. Outras conquistas contribuíram para sacralizar o rosário, três séculos depois da vitória sobre os albigenses o poder atribuído a essa devoção foi confirmado sobre os turcos, com a batalha de Lepanto, na Grécia, em 1571, onde vários escravos recobraram a liberdade. Novamente sobre as tropas turcas a vitória foi conquistada, em 1683, com a libertação de Viena e em 1716 perto de Neusatz, no Danúbio. Associado a vitória e a liberdade o significado simbólico do rosário foi estruturado pelo papa Pio V, em 1569, em Quinze mistérios, cujos temas estão definidos pelo anúncio da encarnação, nascimento, adolescência, missão, vida pública, paixão, morte, ressurreição e ascensão da vida de Jesus. Cada uma das contas simboliza uma rosa, distribuídas em quinze dezenas que constituem uma coroa que é oferecida, consagrada e dedicada à Nossa Senhora, cujos fatos principais de sua vida também são contemplados. A mentalidade religiosa do homem medieval relaciona-se diretamente com o drama da salvação e o perigo do inferno, o que propiciou a criação de meios para se alcançar o sagrado. Relacionando sentimentos e experiências pessoais ao seu momento histórico esses religiosos construíram um mundo de representações, discriminando objetos, tempos e espaços, edificando com o seu auxílio uma abóbada sagrada com que recobrem o seu mundo. A fase que se inaugurou a partir do século XIV, caracterizou-se pela racionalidade e pela produção de riqueza, abalando as antigas estruturas das crenças e as tradições, manipulando todo o universo simbólico construído às suas intenções. As descobertas de novas esferas culturais fizeram com que os expansionistas do século XV levassem a sua cultura a outros povos, utilizando-a como meio de facilitar e assegurar relações. O rosário foi um dos símbolos utilizados e Nossa Senhora a representação do catolicismo nessas regiões, porém o que não consideraram foi que a religião, assim como ainda é, foi “construída pelos símbolos que os homens usam. Mas os homens são diferentes. E seus mundos sagrados também”.

2. Novas conquistas, novos devotos
A popularidade do culto à Nossa Senhora do Rosário decorreu, de acordo com a historiografia que se ocupa desse assunto, a partir da batalha de Lepanto, sendo “intensamente divulgada pelos dominicanos”, o que possibilitou “um florescimento de Igrejas, conventos e irmandades de geral aceitação”. Porém a difusão do rosário foi apontada por Fortunato de Almeida como tendo iniciado ainda no século XIV, quando os portugueses recebiam novas consagrações em toda a cristandade, como a festa da Visitação, tornada obrigatória em 1389 por determinação do papa Urbano VI. No século XV foi instituída a festa do Santo Rosário, elevada a categoria de festa pública somente no século XVI, para a comemoração da batalha de Lepanto, por Gregório XIII. Em sua origem esta festa era dos dominicanos e fora estendida às demais Igrejas pelo papa Clemente XI, que decretou o primeiro Domingo de outubro para a sua comemoração. As documentações mais antigas da devoção ao rosário que se tem conhecimento datam de 1478. Estes primeiros vestígios foram indicados por Alberto Pimentel, referindo-se a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Brancos, fundada em Lisboa. Na obra intitulada História de São Domingos, de autoria do frei Luís de Souza, consta a afirmação de que a partir da segunda metade do século XV essa devoção passou a ser divulgada, sendo fundado no convento de São Domingos de Lisboa uma confraria, o que possibilitou a extensão do culto por todo o reino18. Esta consideração pode ser relacionada com o estudo realizado por Julita Scarano, que através de uma vasta documentação encontrada, considera que “poucas irmandades como a do Santíssimo Sacramento das Almas, alcançaram maior popularidade. Das dedicadas à Maria, a devoção a Nossa Senhora do Rosário, foi a mais importante”. Uma questão torna-se pertinente nesse momento, indagar sobre os fatores que contribuíram para que o culto a Santa do Rosário fosse tornado público somente no século XV, já que essa devoção data do século XIII. A esse respeito podem ser considerados dois acontecimentos pertinentes ao período, o primeiro pode ser relacionado à expansão ultramarina promovida por D. João I, inaugurado com a expedição a Ceuta em 1415. O desbravamento de mundos desconhecidos e o estabelecimento de novas rotas comerciais, motivados pela cobiça do ouro, busca de escravos e pela propagação da fé cristã católica, possibilitaram a extensão do culto mariano, já que esta santa foi adotada como padroeira pelos expansionistas. Outro fator importante foi à reação da Igreja Católica à reforma protestante. Juliana Beatriz Almeida de Souza afirma que

com o movimento reformista se espalhando pela Europa, a contestar as figuras santificadas pela Igreja Católica, salvo o Cristo, o culto a Maria ganhou novo reforço e novo papel, escolhida como arma contrarreformista. Assim, o seu culto foi se transformando em símbolo da identidade religiosa, de fidelidade à Igreja Católica na luta contra os protestantes.
Dessa forma o culto à Virgem Maria ganhou força no contexto dos séculos XV e XVI, através do uso dessa imagem como símbolo da discordância entre católicos e protestantes. As explorações portuguesas ocorridas na costa ocidental africana seguiam-se de tomadas de pontos estratégicos para o controle do comércio, além da proteção do interesse de outros territórios. Durante essas ocupações os povos das cercanias eram convertidos pelos portugueses ao cristianismo, sendo um meio de conseguirem manter as relações comerciais que conquistavam. O alvo principal para a conversão era a elite local, os reis negros, que uma vez aderindo ao cristianismo influenciariam os seus súditos a aceitarem a fé cristã. Com a expedição de Antonio Gonçalves, iniciada em 1441, teve o começo do tráfico negreiro para o reino português, passando a coordenar as relações entre Portugal e África. A privação da liberdade e a servidão imposta aos negros africanos fora justificada pelos papas através das bulas outorgadas aos reis ibéricos quanto ao domínio dos evangelhos e a adesão dos pagãos à Igreja.

Na bula Dum diversa, de 1442, o papa Nicolau V outorgara a Afonso V de Portugal (o “Africano”), o direito de “atacar na costa da África os infiéis, pagãos ou sarracenos, escravizar suas pessoas e apropriar-se de seus bens.” Depois, em 1456, o papa Calixto V outorgara à Ordem de Cristo a Jurisdição eclesiástica sobre a Guiné, assegurando-lhes uma participação no tráfico negreiro.
Desde 1450 cerca de 800 escravos eram enviados anualmente a Portugal e até 1500 cerca de 150 mil foram comercializados pelos portugueses através do Atlântico25. A partir de então a Igreja passou a cumprir o papel de integrar esses escravos em uma sociedade católica e branca, utilizando as irmandades como principal instrumento para introduzi-los ao catolicismo. A devoção a Nossa Senhora do Rosário foi então utilizada pelos dominicanos para inserir os negros nesse novo universo cultural. Um dois fatores que contribuíram para a maior adesão dos negros foi o rosário, que segundo José Ramos Tinhorão, remetia a idéia do “rosário de Ifa”, associando-o aos antigos minkisi, objetos mágicos da cultura africana que promovia cura aos necessitados, composto por pequenas peças irregulares que lembravam rosas, feitas de uma palmeira chamada Okpê-Lifá. Esse contato religioso possibilitaria uma coesão cultural entre brancos e negros por estarem interligados através de uma crença comum, se não fosse a reivindicação dos negros por uma irmandade familiar a sua gente. A união das duas etnias evitaria a divisão das esmolas, condicionando os escravos à mesma subjugação que vivia fora do ambiente religioso. A fim de terem uma maior representatividade na sociedade e as suas necessidades serem mais atendidas, os negros começavam a reivindicar uma irmandade que fosse de sua gente, onde os objetivos e a situação socioeconômica fossem pelo menos equivalentes. A cor da pele então passou a assinalar a separação dos grupos levando os primeiros devotos de Nossa Senhora do Rosário a abandonarem quase que completamente essa devoção, quanto se instituíram as primeiras associações negras. Através da obra de Julita Scarano pode ser considerado que “a Irmandade do Rosário dos Pretos surgiu em Portugal de uma transformação gradativa, nascendo realmente das irmandades de brancos que já tinham a mesma invocação”27 . Segundo Marina de Mello e Souza o contato entre esses dois universos culturais originalmente distintos, acabou gerando um “campo de compreensão mútua”, o que permitiu uma outra leitura das escrituras, permitindo a criação de um “catolicismo africano”. Era então o encontro de duas religiões, onde alguns elementos do cristianismo eram aceitos e “combinados de forma dinâmica as diferentes cosmologias”. Tanto a expansão marítima quanto a crescente popularidade do rosário entre os negros foi responsável pela chegada dessa devoção às colônias ibéricas. Adaptando-se às condições locais, tomou um caráter particular se relacionado aos padrões católicos da Europa. Se com o negro houve uma segunda leitura das escrituras, no Novo Mundo pode-se considerar que ocorreu uma terceira forma de exercer a fé.

3. Brasil, um novo lugar para o culto do Rosário
O caráter do catolicismo brasileiro no período colonial pode ser apontado como leigo, social e familiar.
Leigo porque a direção das associações religiosas mais importantes, como as irmandades, estava nas mãos dos leigos. Social e familiar porque havia uma estreita interpenetração da religião com a vida social e familiar.
 No Brasil o núcleo de convivência social eram as irmandades religiosas haviam se tornado uma forma de distração e diversão para a sociedade através das festas e procissões, havendo uma convicção religiosa mais superficial, diferente da que se vivia na Europa, por ter sido exaltada através de elementos predominantes nos ritos externos, como o colorido e a pompa das práticas que atendiam os sentimentos e os sentidos dos colonos. Ambas as necessidades podem ser compreendidas pela crença dos devotos que queriam agradar a Deus e mais ainda, aos santos de devoção, assim como a importância e o reconhecimento social daqueles que promoviam ou eram homenageados nas festas ou funerais. Caracterizada como catolicismo barroco, pelo seu exagero e exuberância, tornou-se impossível conceber um cristianismo luso-brasileiro sem a intimidade entre o devoto e o santo. Outra característica atribuída a essa crença colonial foi a construção de uma religião profundamente influenciada por práticas pagãs, como
os bois entrando pelas igrejas para serem benzidos pelos padres; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o Menino-Deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se de saia levantada, nas pernas de São Gonçalo do Amarante; (...) Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe.
 É nesse ambiente que a devoção à Nossa Senhora do Rosário chegou ao Brasil. Depois da desapropriação da primazia dominicana sobre esse culto na expansão para o além-mar, várias irmandades do Rosário foram fundadas pelos agostinhos, chegando nessas terras através dos jesuítas e possivelmente vinda também com os confrades saídos de Portugal, tendo que considerar a obra dos missionários no Congo que preparou a aceitação de várias devoções que chegaram ao Brasil. De acordo com Russell-Wood não há dúvida que irmandades de “homens pretos” surgiram no Brasil ainda no século XVI. Segundo Serafim Leite em 1586 os jesuítas fundaram várias confrarias do Rosário entre os escravos dos engenhos, “com o fim de promoverem a piedade e a instrução religiosa de índios e negros”. Já no século XVII foi fundada a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em 1639, na Igreja de São Sebastião do Rio de Janeiro, tendo sido o início da construção da Igreja em 1708, processo que duraram 29 anos para ser concluído. Muitas irmandades dessa invocação foram fundadas nas igrejas do norte e nordeste brasileiro durante o século XVII, como as irmandades existentes no Recife (PE), Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1674) e em Belém (PA) na Igreja de Nossa Conceição da Praia. Foi a partir do século XVIII que o catolicismo passou a ter como base as irmandades religiosas, atuando como “uma força auxiliar, complementar e substituta da Igreja”, assumindo várias responsabilidades religiosas, inclusive no que se refere ao culto dos seus oragos, templos ou capelas oferecidas a um santo. Não se pode esquecer o caráter prático e imediatista da religiosidade colonial e barroca
que buscava consolo e soluções para as questões do cotidiano, principalmente por meio da interferência dos santos, aos quais eram dirigidas promessas que seriam cumpridas mediante o alcance da graça pedida.
 Outra razão que determina a superficialidade é a manifestação de uma “religiosidade epidérmica”. Na obra do Frei Agostinho de Santa Maria foi descrito que
é muito para reparar que querendo manifestar-nos a Mãe de Deus o quanto era formosa, o fez depois de se nomear preta. E acrescentou, que ainda era preta, era formosa. (...) Vejam os pretinhos agora o muito que devem a sua Senhora do Rosário (e também nossa) que para mostrar o muito que os ama, faz tanta estimação de ser preta.
 Essa afirmação pode gerar certos equívocos, por ser utilizada em certos casos de uma forma generalizada, presente na obra de Caio César Boschi:
Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santo Elesbão, Santa Efigênia eram invocações dos negros, não apenas pela afinidade epidérmica ou pela origem geográfica, mas também pela identidade com suas agruras. Os “santos” dos brancos, supunha-se não saberia compreender os dissabores e os sofrimentos dos negros.
 No Brasil, diferente de Portugal, havia a preferência de manter a separação entre brancos e negros, a fim de serem preservadas as vantagens do elevado número de homens de cor. Porém não se pode concluir que a invocação do Rosário na colônia foi particular dos devotos negros, como Boschi, e muito menos considerar que a sua maioria, até o século XVIII era branca, como Quintão38 . Do século XIX, momento em que o escravo almejava conseguir a alforria através da mentalidade abolicionista que se configurava, foi encontrada uma documentação que demostra a instalação de uma Confraria do Rosário no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, porém esta devoção constituiu-se em sua maioria por devotos brancos, realizando algumas restrições quanto ao ingresso de homens negros na irmandade além de não ter havido personagens que remetessem ao título de autoridades reais. Caso particular da devoção na cidade, uma religiosidade que remetia as estruturas das primeiras associações religiosas erguidas na Europa, estando submetida às normas disciplinares e ao pensamento pragmático da Ordem beneditina brasileira.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA DE SOUZA, Juliana Beatriz. “Viagens do Rosário entre a Velha Cristandade e o Além-Mar” In Estudos Afro Asiáticos. 02. Universidade Cândido Mendes, ano 23/ jul. dez./ 2001.
ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal, Imprensa Acadêmica COÍMBRA, Vol. 2.
AMARAL, Raul Joviano do, Os pretos do Rosário de São Paulo: Subsídios Históricos, São Paulo, Edições Alarico, 1953.
BOSCHI, Caio César, Os Leigos e o Poder (Irmandades leigas e políticas colonizadoras em Minas Gerais), São Paulo, Editora Ática, 1986.
PIMENTEL, Alberto, História do culto de Nossa Senhora, Lisboa, Imprensa Acadêmica COÍMBRA, 1899.
QUINTÃO, Antonia Aparecida, Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII), São Paulo: Annablume: FAPESP, 2002.
QUINTÃO, Antonia Aparecida, “As Irmandades Religiosas: estrutura e funcionamento” In O significado das irmandades de pretos e pardos: O papel das mulheres, Grupo de Trabalho 4. www.desafio.ufba.br/gt4-015.html.
SCARANO, Julita, Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII, São Paulo: Ed. Nacional, 1978, 2ª ed.. TINHORÃO, José Ramos, Os negros em Portugal, Lisboa, Editorial Caminho S/A, 1988.





Nenhum comentário:

Postar um comentário